Historiador Renato Franco estuda o abandono de recém-nascidos na Vila Rica do século 18

Livro analisa o destino dos enjeitados na sociedade

por Adalgisa Arantes Campos 05/04/2014 10:00
Fundação Biblioteca Nacional/Reprodução
(foto: Fundação Biblioteca Nacional/Reprodução)
Renato Franco principia A piedade dos outros - o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII, obra recentemente editada pela FGV, a partir de relato inusitado, o de Cipriana, criança branca criada pela escrava Joana de Videira, preta mina que deliberadamente matara seu recém-nascido porque ele era muito escuro, e como ela queria “conservar a amizade com o dito seu senhor”, tratou de dar um fim àquele rebento, matando-o afogado, e colocando em seu lugar uma enjeitada branca. Assim, a Cipriana, “filha de mulher branca e honrada que a enjeitou por não padecer infâmia na sua honra”, viveu como escrava por duas décadas. A partir desse exemplo dramático, Renato Franco introduz o tema do abandono de recém-nascidos na época moderna (1500-1800), que, embora fosse condenado moralmente, constituía uma alternativa menos cruel em relação ao infanticídio.

Nessa introdução, o autor retoma os estudos bibliográficos sobre a história da criança, bem como das Misericórdias, instituição responsável pela “roda de expostos”, móvel específico que girava entre o exterior e o interior, garantindo a privacidade de quem depositava a criança e, ao mesmo tempo, sua segurança. De imediato, fica anunciado que, em Vila Rica, sede da Capitania das Minas Gerais, não foi instalada uma roda de expostos tal como existiu em Salvador e no Rio de Janeiro, e que a Irmandade da Misericórdia foi tardia (quarta década do século 18) e ineficaz, por não haver criado a dita roda. Ademais, o abandono não se restringiu às crianças brancas, que poderiam ser motivos de “infâmia” para os genitores. Mais ainda, havia um segredo, uma verdadeira cumplicidade dos conhecidos e vizinhos em torno da origem das crianças expostas, conluio que permitiu, inclusive, que Cipriana, nascida livre, fosse reduzida ao cativeiro. Esse silêncio em relação à fraqueza alheia pode ser interpretado também como o zelo em não pecar com a língua, pois o que nós criticamos no alheio pode nos atingir também (Epístola de Tiago).

Como chegar a relatos tão personalizados e circunstanciados historicamente e, ao mesmo tempo, trabalhar com exaustivas cifras sobre o abandono de crianças, taxas de ilegitimidade, quantias gastas com os criadores com o sustento dos abandonados? A bibliografia utilizada – bastante exaustiva – foi lida diligentemente. As fontes históricas usadas nessa obra são variadas – legislação sinodal, ordenações filipinas, editais do Senado da Câmara e, sobretudo, uma série contínua, sistemática, de atas de batismo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica. Tão logo a criança era encontrada, necessitava ser batizada, e nesse documento consta a sua “condição de exposta”, que poderia ser resgatada se seus genitores chegassem a se casar, o que acontecia, mas era ínfimo diante das grandes quantias de exposição.

Por sua vez, os registros de óbito, com surpreendente continuidade, atestam o quão difícil era superar o período da lactação e, por fim, as atas de casamento nos mostram expostos que finalmente conseguiram chegar à idade adulta e até realizar um matrimônio auspicioso, com ascensão social. Essas três séries paroquiais, que constituem um raro patrimônio da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, foram cotejadas, os dados foram cruzados e devidamente circunstanciados com uma documentação variada.

Vejamos como o autor continua expondo sua admirável pesquisa nessa obra que nos dói na alma por tratar de recém-nascidos abandonados em horas desertas nas soleiras de domicílios de Vila Rica, sede da Capitania das Minas Gerais, na expectativa de que fossem encontrados por pessoa disposta ao imediato acolhimento ou a providenciar um acolhimento nas vizinhanças e, nessa impossibilidade, que fosse a entrega definitiva dos pequenos desvalidos ao Senado da Câmara para o encaminhamento legal. Daí o título A piedade dos outros..., que nos entretém com sofreguidão na leitura, numa esperança de que haja um pouco de sanidade e felicidade na história humana, mas que nos desilude com dados e informações objetivas a indicar que boa parte daqueles inocentes falecia já no período de lactação, virando anjinho no céu, crença vigente para nos confortar das perdas. Em muitos casos, a capa de compaixão é desnudada com o concomitante interesse financeiro do criador ou criadora, que não deixava de comparecer ao Senado para o recebimento daquela bolsa, digo, daquela espórtula.

Sobrecarregada com o aumento das despesas, a Câmara não consegue manter seus compromissos com aqueles que detinham a criação dos enjeitados. Em princípio, o ressarcimento pela criação dizia respeito à criança branca, mas em um contexto escravista, com altas cifras de ilegitimidade e miscigenação, a Câmara foi instada a atender também as crianças negras e mestiças. A decepção aumenta ao constatarmos que essa abertura das autoridades régias, com a ampliação do tributo, conduziu paradoxalmente ao aumento das cifras de exposição, embora não tenha atingido uma formalização da função de criador. Passamos a ter um pouco de clemência ao considerar que aquelas mães escravas queriam uma sorte melhor, uma vida fora do cativeiro, ainda que sob o risco de morte.

Criar temporária ou definitivamente uma criança abandonada consistia prática costumeira, compartilhada pelas gentes coloniais. E, assim, muitas crianças iam passando de casa em casa, algumas com a possibilidade de alcançar a afeição, um acolhimento de fato cristão; outras vezes, não passando de agregados a contribuir no serviço e nas receitas do lar respectivo. A partir dessa leitura, podemos ver nos agregados listados pelo Recenseamento de Vila Rica (1804) como um potencial exposto. Renato Franco documenta exaustivamente a flutuação das cifras de abandono vila-riquenhas, aumentadas vertiginosamente a partir de 1740, quando de fato a Câmara passa a assumir o sustento dos inocentes negros e mestiços, legalização do tributo que acaba suscitando o aumento substantivo do abandono. A Câmara passou a assumir, isso não que dizer que ela passou a pagar de fato ao conjunto de criadores.

Compaixão O professor Renato Pinto Venâncio, estudioso da criança, mas não da exposição em si, muito traquejado em fontes arquivísticas, é autor do texto da orelha do livro, construído a partir da explicitação do sentido do termo compaixão, passando pelas motivações que levavam ao abandono e ao temor coetâneo de que a criança não fosse batizada, em uma sociedade que era escravista, bastante miscigenada e católica.

Como professora de história da arte, destaco que Jean-Baptiste Debret, professor de pintura histórica, que esteve no Brasil entre 1816 e 1830, embora fosse considerado excelente professor e tenha formado gerações de artistas por meio de suas aulas na Escola Imperial de Belas Artes, teve uma pintura medíocre, como também era a produção de seus contemporâneos, marcados pelo neoclassicismo e concomitante sistema de mecenato (dom Pedro II financiava a escola).

Por sua vez, suas aquarelas continuam reveladoras da vida cotidiana, sendo difícil encontrar naquele período quem a ele se iguale. De maneira que a primeira parte da apresentação feita pelo colega Luciano Figueiredo não se aplica ao conteúdo da aquarela e muito menos ao artista que nos deixou a utilíssima Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, empregada inevitavelmente para ilustrar os livros didáticos e acadêmicos. Na segunda parte da apresentação, o tom é literário, assim, o colega deixou uma oportunidade ímpar para analisar o que entende tão bem, a história de Minas colonial.

Adalgisa Arantes Campos é professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


A piedade dos outros - o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII
• De Renato Franco
• Editora FGV
• 256 páginas, R$ 38

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