Entre Deus e Mamon

por 01/03/2014 00:13
Edições Flammarion/Reprodução
(foto: Edições Flammarion/Reprodução)
No livro A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia histórica, Jacques Le Goff defende uma tese: não se pode falar em capitalismo durante o período medieval, aliás, nem sequer em pré-capitalismo. As condições para o novo sistema econômico ainda não estavam dadas: “a penúria de metais preciosos, a fragmentação dos mercados impediam as condições para isso”.

Mas, para o historiador, o maior impedimento não era de ordem material, mas moral, uma vez que o poder econômico não havia deixado para trás os valores da religião e da sociedade cristãs. Sem entender o homem medieval não é possível compreender suas opções históricas. Por isso, mais que um estudo acerca das condições materiais do período, o livro de Le Goff se filia ao que ele nomeia como antropologia histórica. Como vai ficar claro, caritas e capitalismo não se bicam.

Se a conclusão parece negativa, nem por isso o percurso deixa de ter interesse. Aliás, é justamente por expressar um novo modelo de relação com o dinheiro que a Idade Média parece tão interessante ao leitor moderno, que acha que o capitalismo sempre existiu. O historiador vai analisar como a relação dos homens vai se alterando em relação à moeda, tanto em sua vertente econômica e política como moral. A história da riqueza do homem é um caminho que vai muito além da economia para irrigar até mesmo a psicologia.

Em seu itinerário histórico, Le Goff vai mostrar as mutações pelas quais passa o dinheiro na vida dos homens no longo milênio medieval, da desconfiança inicial – em regressão ao papel da moeda na Antiguidade – até a aceitação parcial, quando o dinheiro deixa de ser maldito e “caminho do inferno” para se tornar algo relativamente aceitável – mas sempre suspeito.

As várias faces do dinheiro perpassam o estudo do historiador: as trocas, a revolução comercial, as ordens medicantes, a usura, a valorização da pobreza, o aperfeiçoamento do sistema financeiro, o papel da moeda no surgimento das cidades e na formação do Estado, o mecenato, a fragilidade do fisco, o desenvolvimento do luxo, a defesa do preço justo, a relação com os valores morais do cristianismo. Há um movimento duplo, que vai da desvalorização dos primeiros séculos do período à lenta restauração da importância da moeda, que coincide com grandes transformações sociais. Mas o autor, como sempre, não coloca a ordem política acima das minúcias do humano. É esse jogo complexo e fascinante, que vai da política à moral, da economia à antropologia, que dá ainda mais valor ao balanço histórico de Le Goff.

A condenação da avareza e o elogio da caridade, herança mais do evangelho que do Antigo Testamento, atravessou a Idade Média, nem sempre de maneira uniforme. “Não se pode servir a Deus e Mamom”, preconiza Mateus. Foi o abrandamento dessa fórmula que levou, ao longo dos séculos, às transformações morais e antropológicas que depois se materializaram em atitudes econômicas e sociais. A Idade Média e o dinheiro é a fábula real dessa transição.

Quando o papa Francisco confessa seu sonho de ver uma “Igreja pobre”, está falando uma língua que vem de antes do capitalismo. E que nem por isso deixa de ter eco no coração de alguns homens e mulheres. (João Paulo)


Trecho

“Naquilo que se pode chamar a luta contra o dinheiro ou o diálogo com o dinheiro, a mais engajada das ordens é a dos franciscanos. Seu fundador, Francisco de Assis, é filho de um comerciante, e sua revolta no sentido de alcançar ele próprio a salvação e a ela levar outros homens comporta como ideia e ação fundamentais não apenas a luta contra o dinheiro, mas a recusa do dinheiro. Isso introduzirá na ordem que ele funda sob a pressão do papado, e em um mínimo grau na ordem dominicana, a prática da mendicância, donde o nome que será dado aos integrantes de frades mendicantes.”

HOMENS E MULHERES DA IDADE MÉDIA
• Sob a direção de Jacques Le Goff
• Editora Estação Liberdade
• 448 páginas, R$ 115

A IDADE MÉDIA E O DINHEIRO
• De Jacques Le Goff
• Editora Civilização Brasileira
• 272 páginas R$ 35

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