O Natal é um tema comum na literatura brasileira, especialmente na poesia. Escritores de todas as épocas – inclusive os sem religião – deram de presente a seus leitores versos sobre essa importante festa. Entre tantos poemas famosos temos os de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima e Guimarães Rosa. E como o Natal os emocionou, para que eles o transformassem em poesia? É o que veremos a seguir.
No “Soneto de Natal”, Machado de Assis pretende relembrar a data em seus tempos de garoto e transportar suas lembranças para o tempo em que escreve. Entretanto, a inspiração falha, e ele só consegue escrever este verso: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. A pergunta, que contém uma alternativa, pode significar não só a impossibilidade de recuperar o passado, como também a incapacidade de revivê-lo tal como aconteceu. Isso porque o ser humano e os episódios a ele relacionados existem em permanente mudança.
Também Manuel Bandeira encontra frustração na tentativa de trazer para o tempo presente o seu Natal de menino morando no Recife. Seu poema tem o título “Natal sem sinos”. Nele cita várias igrejas daquela cidade, a música de seus sinos, toques que ajudavam a alegrar a festa. No poema, Bandeira rima “sinos” com “meninos”, reforçando a ideia do que lhe ficou do Natal da infância: uma festa de sinos, cujo encanto se perdeu porque ele não mais os está ouvindo.
O poema de Augusto Frederico Schmidt, “À procura do Natal”, é marcado pela religiosidade, parece uma oração verdadeira. É uma prece de busca do Senhor, uma busca às escuras, quer dizer, difícil, espiritualmente torturada: não há luzes nas casas para orientá-lo, não há estrelas-guias, pois todas estão imóveis no céu. Para Schmidt, ir à procura do presépio, sem ter um caminho iluminado, é atravessar dificuldades para encontrar a verdadeira fé.
Carlos Drummond de Andrade também vai procurar na infância o seu perdido Natal, no poema “O que fizeram do Natal”. Até as palavras têm um tom infantil, pelo uso de diminutivos (“coitadinho”, “burrinho”, “estrelinha”, “nuzinho”.) O poeta contrapõe a festa religiosa, tradicional para as velhas gerações, à festa profana cultivada pela juventude. Diz Drummond que, enquanto as beatas adoram o deus-menino, suas filhas com os namorados vão dançar nos clubes. Então, o que fizeram do Natal? Aquilo que hoje se vê: uma comemoração religiosa para poucos; uma comemoração de lazer e de consumismo para muitos, desprovida de qualquer sentimento religioso, de qualquer clima confraternizador.
Vinicius de Moraes escreveu “Poema de Natal”, vendo esse dia como símbolo da própria condição humana no seu cotidiano binário de vida e morte, de alegrias e dores, de amor e desamor. Assim, diz ele que “fomos feitos para lembrar e ser lembrados, chorar e fazer chorar, enterrar os nossos mortos”. No geral, a vida é uma divisão entre palavras e silêncios, onde brilha a esperança do milagre de renascer depois da morte. A musicalidade do poema traz impressa a marca de compositor popular do parceiro de Tom Jobim.
No “Poema de Natal”, de Jorge de Lima, o leitor encontra a leveza ingênua no tratamento do tema. O filho de Deus é humanizado, adotado como filho do poeta. Este pretende levá-lo ao zoológico e passear com ele pela cidade quando crescer. Os pedestres irão reconhecê-lo, apontar sua identidade divina e humana. O poeta acaba pedindo ao menino que não o deixe levar pelas tentações do mundo, pelo pecado. Aqui, já o transforma em Deus.
Quem fecha a nossa lista é o grande Guimarães Rosa, com o longo, sofisticado e maravilhoso poema “O burro e o boi no presépio”. O texto é composto de vários minipoemas, como se formassem um catálogo de exposição de quadros retratando o nascimento de Cristo. Cada poeminha é inspirado em um quadro diferente, de pintores famosos em todo o mundo. Dos quadros – que o autor identifica – são destacados apenas o burro e o boi. É sobre eles, enquanto pinturas, que Guimarães Rosa fala, para, no final, retomar sua visão desses animais no “presépio” de sua perdida infância.
Dessas sete representações poéticas do Natal, algumas lições nos ficam. O Natal é uma festa para todos, ora buscando o tempo perdido, ora esperando o tempo a ser achado. Aqueles que têm a fé cristã, que a praticam sem hipocrisia, deveriam comemorá-lo sobretudo envolvidos pelo espírito religioso. Os adeptos de crenças não cristãs e os descrentes vão encará-lo enquanto oportunidade de estar com pessoas: família, amores e amigos, num ato de confraternização solidária.
Em visitas, viagem, hospedagem, refeições especiais, festinhas e troca de presentes, todos nós - cristãos, não cristãos ou ateus - devemos aproveitar o Natal para exercitar a saudável convivência em sociedade. Não para comprar, comer e beber desesperadamente, segundo as ordens do mercado. Pois, para isso, não deveríamos ter sido feitos.
Letícia Malard é professora emérita de literatura brasileira da UFMG.
Soneto de Natal
Machado de Assis
Um homem, – era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, –
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
O que fizeram do Natal
Carlos Drummond de Andrade
Natal.
O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus-menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.
As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.
Poema de Natal
Jorge de Lima
Ó meu Jesus, quando você
ficar assim maiorzinho
venha para darmos um passeio
que eu também gosto de crianças.
Iremos ver as feras mansas
que há no jardim zoológico.
E em qualquer dia feriado
iremos, então, por exemplo,
ver Cristo Rei do Corcovado.
E quem passar
vendo o menino
há de dizer: ali vai o filho
de Nossa Senhora da Conceição!
– Aquele menino que vai ali
(diversos homens logo dirão)
sabe mais coisas que todos nós!
– Bom dia, Jesus! – dirá uma voz.
E outras vozes cochicharão:
– É o belo menino que está no livro
da minha primeira comunhão!
– Como está forte! – Nada mudou!
– Que boa saúde! Que boas cores!
(Dirão adiante outros senhores.)
Mas outra gente de aspecto vário
há de dizer ao ver você:
– É o menino do carpinteiro!
E vendo esses modos de operário
que sai aos domingos para passear,
nos convidarão para irmos juntos
os camaradas visitar.
E quando voltarmos
pra casa, à noite,
e forem para o vício os pecadores,
eles sem dúvida me convidarão.
Eu hei de inventar pretextos sutis
pra você me deixar sozinho ir.
Menino Jesus, miserere nobis,
segure com força a minha mão.