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Trilogia suja

Obra do escritor e compositor Luís Capucho revigorou a literatura gay brasileira

Os três romances do capixaba emocionam pelo lirismo brutal e por sua apurada linguagem

Paulo Bentancur
O cantautor e romancista Luís Capucho transforma sua vida em arte - Foto: Rafael Saar/divulgação No começo de 1990, Luís Capucho despontava como um compositor dos mais desafiadores, capaz de chamar a atenção de Ney Matogrosso e Nana Caymmi, e de levar Cássia Eller a gravar sua canção 'Maluca'. Gravado em 1995 no extinto Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro (voz e violão, mais intérprete que cantor no restrito sentido técnico), seu show seria aparição meteórica se o coma a que foi levado por uma toxoplasmose em consequência do vírus HIV o impedisse de voltar à tona e de gravar dois CDs, 'Lua singela' (2003) e 'Cinema Íris' (2012), e ainda publicar três romances, 'Cinema Orly' (Interlúdio, 1999), 'Rato' (Rocco, 2007) e 'Mamãe me adora' (Vermelho Marinho, 2012). Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, em 1962, o capixaba Capucho reside em Niterói há 37 anos. Artista na linha da geração beat, dispensando inclusive selos como esse, o escritor, com apenas três narrativas longas (novelas, para sermos específicos), sacudiria a bem comportada literatura gay, se compararmos escritores como os que a ela se filiam, mesmo em suas diversidades.


Cinema Orly Quando estreou na ficção com 'Cinema Orly', Capucho não pediu licença ao literato que poderia ser, e fez de sua condição extrema verdade humana sem contemplações, um espetáculo despido de qualquer artifício – sobretudo se considerarmos que o gênero atende todas as vozes (prosa, poesia, teatro) e, no entanto, raramente consegue se despir de uma afetação inversamente proporcional à literatura feita por machos que pensam em fêmeas durante 24 horas por dia. Esse surpreendente escritor arquitetou sua narrativa como se a beleza fosse o blefe que, aliás, a beleza costuma ser. Um capricho, uma convenção confortável.

Bem ao contrário, em 'Cinema Orly' temos afinal uma espécie de Jean Genet dos trópicos. E para que se ampliem as correlações estéticas, um Rabelais (1494 –1553) não glutão, mas luxurioso, com uma perversão que quase não seria exagero chamar de santa, adorando falos num cinema pornô onde os tipos mais estranhos do Rio de Janeiro, em plena Cinelândia, vão fugir do tédio e da loucura para se entregar ao que parece vício, mas antes de mais nada é libertação. Ninguém ali está de brincadeira. Mentira alguma encontrará espaço.

Do aparente voyeurismo parte-se para a pegação, ninguém é de ninguém e nem por isso todos são de todos. Há rígidos códigos de conduta, e quem os rege é a legitimidade que só o desejo individual sustenta. Dessa forma, 'Cinema Orly' tem a tensa e densa atmosfera de um inferno. Entretanto, é o paraíso do qual o frequentador quase diário não consegue se afastar.

O que marca, fundamentalmente, nesse romance de estreia é a linguagem. Luís Capucho não quer nem saber. Diz tudo o que sente e pensa com todas as letras, todas as palavras, numa espécie de acintoso despudor que, na forma e no fundo, nada mais é que a poesia (ainda que negra) de uma prosa que goza em dissolver-se no mais brutal dos lirismos. Estilo de quem, por absoluta coragem, não tem razões para usar o freio numa hora tão reveladora.

Rato Morando numa cabeça de porco, expressão carioca para cortiço, o narrador e a mãe (no segundo volume, elementos autobiográficos são tão evidentes que até nos parece frágil dar-lhe o nome de literatura de confissão) foram deixados administrando uma casa onde se alugam quartos para os sujeitos menos recomendáveis. A mãe de Luís – sim, eis uma autoficção e, assim, o narrador só pode mesmo ter o nome do autor e viver, talvez com algumas outras palavras, o que este vive –, a mãe de Luís, fundamental que se frise, é uma figura quase anódina não fosse a generosidade de uma alma jamais invasiva. O protagonista se perturba, página a página, ante a visão de homens que espia ensaboando-se no banheiro e, até nesse caso, sente o peito estilhaçar-se ainda que frente a figuras decadentes, distraídas, ausentes mesmo, desde que possa entrever nelas – ou adivinhar, pela fantasia – um sexo talvez disponível.

Trata-se do melhor livro de Capucho, o mais bem-estruturado e escrito. Nele, a fluência da linguagem coleia menos, segue rumo mais direto. Nele, enfim uma relação de namoro se dá. O afeto não se perde na milleriana disposição esfaimada para o gozo (o Henry Miller dos anos 1960). Em 'Cinema Orly', os frequentadores anônimos na penumbra do cinema eram chamados de répteis. Aqui, são ratos que ocupam a cabeça de porco até que mãe e filho acabem enxotados do próprio negócio e vão morar num porão cedido pela compreensão de um amigo.

Ironicamente, nesse livro não se faz presente nenhuma espécie de ressentimento. Os que levam a vida ou a vida a levar aqueles que nela estão à mercê, cavando suas oportunidades, são da mesma natureza. Ratos. Uma ninhada. Mas só um deles tem voz para contar.

Mamãe me adora No terceiro e mais recente livro de Capucho, o drama da Aids, do coma sofrido e do qual se recuperou não sem sequelas (mancando de uma perna, a dicção comprometida), os limites entre o que é narrado e as vivências do escritor definitivamente provam que estavam dissolvidos desde o livro de estreia. Mais poético que 'Rato', mais liberto que 'Cinema Orly', 'Mamãe me adora' é novela para a qual é fundamental ir-se de alma aberta. Atravessa-a, quase metade dela, uma viagem do Rio de Janeiro a Aparecida do Norte. A mãe fez 75 anos. O filho nota os primeiros sinais de cansaço dela, sua decadência física. Talvez familiarizado com a própria, tornou o imenso amor que sente pela mãe uma forma de força adicional que, esta sim, o ajuda a auxiliá-la com o peso de uma existência, quando sempre quem o carregou foi ela – e o peso dos dois.

A descrição da viagem de ônibus: os inúmeros fatos que a compõem, desde os passageiros, o motorista sedutor, a mãe e seu alheamento crescente, os campos em redor, as cidades por que passam à margem, as rodoviárias com pausas para eventuais lanches, e destacadamente a figura de Nossa Senhora Aparecida, encontrada no mar por pescadores e, desde então, figura mítica ligada às águas.

Quando ao final chegam à cidade, descem antes da última parada para acompanhar a procissão. A mãe leva um tombo. Nem o narrador nem o leitor dão-se conta; tudo parece tão somente um acidente de percurso, uma trapalhada em meio à multidão somada à sensibilidade, tocada agora de outra forma.

No hotel, destinados ao quarto dos fundos, são convidados por um casal com quarto de frente para a catedral e os romeiros. Assistem a tudo. Até a manhã seguinte, quando, sem tomar o café da manhã, a mãe inapetente respeita apenas o horário de seus remédios. A seguir, vão ver a imagem da santa. Banhados de luz que naturalmente é filtrada pelos vitrais, mas que, para Luís e a figura materna, representa a aura de algo mais. Ele declara acreditar em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.
Em tudo, tudo, tudo. Menos em Deus.

A mãe lhe pede que compre umas velas. Ele sai apressado. Na volta, já a encontra agonizante, os olhos sem vida. Pede ajuda, numa das cenas mais marcantes da literatura contemporânea. O impacto reside na cena propriamente, e não caberia aqui reproduzi-la.

Lida em retrospecto, a sensação que nos dá é que a literatura de Capucho se liquefez. Que ele buscou sempre o sumo onde tantos outros inventaram amores, deuses, tramas e até personagens que os superassem. Luís declarou em dois de seus três livros: “Sou um fodido”. Despido de medo, enriqueceu uma literatura acovardada, viciada em se esconder em performances por meio das quais sempre acreditou dizer enfim a sua verdade. Não era.

 

Paulo Bentancur é escritor e crítico
 

 

CONFIRA

. CINEMA ORLY
Editora Interlúdio
144 páginas, R$ 56

. MAMÃE ME ADORA
Editora Vermelho Marinho
120 páginas, R$ 36

. RATO
Editora Rocco
128 páginas, R$ 26


Distribuição do autor. Informações: luiscapucho11@gmail.com