Museu Histórico Abílio Barreto se torna espaço contemporâneo

Ao completar 70 anos em nova configuração, museu deixa de representar um lugar do passado

por Leônidas Oliveira 04/05/2013 00:13
MHAB/Divulgacao
Fotografia do Museu Histórico Abílio Barreto em 1946, três anos depois de sua inauguração (foto: MHAB/Divulgacao )

Falar sobre os 70 anos do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB), inaugurado em 1943, é discorrer também sobre sete décadas da presença dos preceitos modernistas em Belo Horizonte, que encontraram no entusiasmo do então prefeito Juscelino Kubitschek figura de um grande apoiador. Esse modernismo contraditório e tão nosso, avançado, mas com profundo sentimento do passado. O idealismo do político, junto com o de Abílio Barreto, fez surgir na capital este espaço para salvaguarda da história da cidade, assim como algumas de nossas mais importantes construções, quiçá o maior legado pertencente ao patrimônio cultural local. Desse modo, a capital comemora essa herança que reverbera no sentimento dos belo-horizontinos e se traduz num misto de orgulho e assombro.

São inúmeros os edifícios e espaços abertos naquele tempo, hoje símbolos identitários da cidade. É a JK – prefeito, governador, presidente da República e, sobretudo, homem modernista – que devemos a vinda dos revolucionários artistas Oscar Niemeyer, Burle Marx, Portinari, Volpi e tantos outros. Todos eles atuando de forma peculiar no inigualável conjunto arquitetônico e paisagístico da Pampulha, ora candidata a Patrimônio da Humanidade e que completa também 70 anos no dia 16. Temos, portanto, um prefeito profundamente modernista, no entendimento brasileiro do termo, ou seja, vanguardista na ação, mas histórico e nacionalista por convicção.

Em 1943, museu de uma cidade tão jovem – pois contava na época menos de 50 anos –, o Museu Histórico Abílio Barreto, a partir de agora também conhecido como Museu da Cidade, consolidou-se como espaço guardador da cultura material e imaterial de Belo Horizonte. Foi pioneiro, fez escola e chegou ao século 21 com acervo de mais de 70 mil itens. Pode-se vangloriar por continuar como museu de vanguarda, fiel a seus idealizadores. Depois de 70 anos, ocupa-se da aquisição, guarda, conservação, investigação e transmissão de informações. Promove exposições de testemunhos materiais dos indivíduos e do seu meio, lança luz em saberes, práticas, valores, modos de vida, nas representações e nos mais variados símbolos e signos vinculados ao rico acervo de sua reserva técnica. Busca exercer sua função como equipamento de memória, objetivando não só a divulgação do conhecimento produzido, mas a transformação social pela cultura, intensificada nos últimos anos por meio de sua política museológica.

Ao trabalhar com os indícios de temporalidades múltiplas, o Museu da Cidade reconfigura incessantemente as tramas de uma cidade complexa, alimentando as batalhas de memórias e consolidando um modo de fazer e valorizar a história como elemento intrínseco e necessário para o pleno desenvolvimento da vida humana. Assim, podemos dizer que o museu humaniza a cidade, torna-a reconhecível e nela reforça a importância do patrimônio cultural, seja ele material ou intangível, como elementos chaves no desenvolvimento de um território.

Essa maneira de se relacionar com o passado é fruto de prática museológica minuciosamente revista e adotada nos últimos anos. Com a construção do edifício sede, ao lado do antigo casarão do extinto Curral Del Rei, e por meio de profundo processo de readequações internas, de respeitado museu enciclopédico transformou-se em importante referência cultural da cidade (e do estado), ao dirigir “novos” olhares para muitas direções. Sua prática, no entanto, continuou enfocada na luta incessante pelo não esquecimento das memórias da cidade. Por isso, mesmo depois de sua “reinvenção”, permaneceu tendo o território (isto é, a cidade de Belo Horizonte) como eixo fundamental das suas ações – assimilando o espaço, suas percepções, seu uso e sua dinâmica ao longo dos anos.

As transformações operadas no decorrer do tempo sintonizaram a instituição com os debates que vinham havia alguns anos ocorrendo em seu campo de atuação – a construção de narrativas e saberes sobre o passado – e atualizou sua inserção nos debates sociais. De forma intensa, o Museu Histórico Abílio Barreto mergulhava numa concepção museológica contemporânea, enfatizando crescentemente seu papel como meio de informação, lugar de pesquisa, instrumento de educação e fortalecimento da cidadania. Em outras palavras, partia de uma concepção de história e de memória que ia além de ações fundadoras e celebradoras de cunho oficial, valorizando a dinâmica social e suas diversas faces. Foi o momento em que se colocou na pauta do dia a história como interpretação e explicitação de conflitos.

Cidades justapostas

O passado cristalizado e de grandes feitos – ou de curiosidades – se transformou em processo de construção: da cidade, das memórias, das histórias. O patrimônio legado (em forma de objetos, documentos, fotografias, conjuntos arquitetônicos) e preservado continuou a ser valorizado em sua materialidade, contudo, as redes de sociabilidade, as técnicas e saberes, as tensões sociais, o emaranhado de significados e subjetividades deram nova roupagem ao trabalho realizado. Dimensões que permitiram estabelecer relações entre o sujeito do presente e as interpretações sobre os elementos do passado, que conformam a cidade e que, em Belo Horizonte, ganha contornos dilacerantes. Isso porque temos aqui cidades justapostas num conflito intenso entre presente e passado, fazendo-nos lembrar da feliz fala de Baudelaire: “A forma de uma cidade muda mais rapidamente, meu Deus, que coração infiel!”.

É hoje o MHAB, o Museu da Cidade, experimentado e reconhecido. É como Museu da Cidade que celebramos seus 70 anos. E, como tal, tem agido nesse sentido, ou seja, buscando compreender a capital mineira nas dimensões da cidade/nação, cidade/região, cidade/bairro, cidade/rua e cidade/sujeito, e destruição/reconstrução; mas, também, a cidade como objeto, como art-e-fato, como coleção, como fato museológico e, sobretudo, como fato social. Dessa forma, o museu tem lidado com a complexidade da cidade e de seu cotidiano, dialogando com o seu próprio contexto territorial, com as visões expressas nos estudos acadêmicos, mas que ganham corpo nas crônicas, poesias e tantos outros textos que revelam as incontáveis faces e dimensões de Belo Horizonte.

O Museu Histórico Abilio Barreto não é, portanto, um lugar do passado, mas sim um espaço contemporâneo que trabalha com o passado. O museu, dentro e fora de seus muros, atua na busca das pontes que ligam as diversas experiências, os diversos fragmentos que se apresentam sob a forma de acervo. Assumindo essas concepções e esses modos de trabalhar e construir saberes, o Museu da Cidade vem também empreendendo dinâmicas variadas para manter o diálogo com o público. Este, como museu público que é, talvez seja sua maior função: promover interação com a cidade e salvaguardar a história das gentes daqui. Este ano, nas comemorações dos seus 70 anos, de forma especial, o museu contará mais histórias, com um calendário rico, exposições, encontros, seminários e finalmente terá na requalificação arquitetônica dos seus espaços um novo lugar inteiramente dedicado à sua função, a cidade de Belo Horizonte.

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