Impedida de trabalhar presencialmente nos palcos, lugar a que está acostumada há mais de duas décadas, Iara Rennó não deixou o confinamento abater sua produtividade como cantora e compositora.
Durante o tempo que passou em casa, sua mente inquieta ocupou-se de projetos que guardam uma relação íntima com a pandemia. O mais recente é o álbum "Pra te abraçar", recém-lançado de forma independente, com a participação das cantoras Céu, Ava Rocha, Thalma de Freitas, Alzira E, Josyara e Duda Brack.
O disco é um desdobramento da websérie de mesmo nome que a artista veiculou em seu canal no YouTube entre março e abril deste ano. Em seis episódios, Iara Rennó apresentou 30 músicas inéditas, sozinha e acompanhada, no formato voz e violão. Ela então selecionou 12 que formam o registro disponibilizado nas plataformas digitais. Portanto, os áudios das faixas são os registrados em vídeo, após o processo de mixagem e masterização.
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"Selecionei um conjunto de gravações que conversam entre si e têm qualidade para estar em disco", conta ela. "A ideia de lançar esse registro surgiu com o andamento do projeto, quando a gente percebeu que algumas músicas tinham condições, a nível técnico, de ser distribuídas digitalmente, em áudio", explica.
Grande parte das canções não só foram escritas ao longo do último ano, como abordam diretamente questões da pandemia. A faixa-título "Pra te abraçar", por exemplo, é uma espécie de mantra em que Iara Rennó entoa a frase "sobreviver pra te abraçar". Já "Be brave", cantada em inglês com Thalma de Freitas, aborda os protocolos de segurança básicos no combate à COVID-19, como usar máscara e lavar as mãos, além da coragem convocada no título da música.
E o contexto de composição de algumas delas tem tudo a ver com a rotina hiperconectada da quarentena. "Virá", responsável por abrir o disco, foi escrita depois que Iara viu um post da cantora Céu no Instagram com o início da melodia.
"Depois que eu vi, fiz quatro frases melódicas e mandei para ela. Ela gostou e então eu fiz o restante da letra", conta a cantora paulistana. "Muitas dessas composições nasceram por meio da comunicação virtual, principalmente pelo WhatsApp. Antes da pandemia, isso já era muito comum para as pessoas que compõem. Mandar a música por e-mail, enviar a melodia por áudio... Esse jeito de trabalhar só se intensificou porque acabou sendo a única via", comenta.
Em alguns casos, a gravação também se deu de forma remota. A cantora e compositora baiana Josyara, com quem Iara Rennó divide a faixa "Molha a malha", gravou de sua própria casa. Mas a artista também conseguiu receber os parceiros presencialmente, caso de Alzira E, sua mãe, que aparece em "Sol e sal"; Joy Espíndola, seu irmão, que participa de "Escuras"; e também de Ava Rocha, em "Deusa dela", e Duda Brack, em "Súbita".
"É como se eu dissesse: 'Você está vivo? Vamos ver se você está se sentindo vivo'. Minha intenção com ele (%u201CAfrodisíaca%u201D, álbum de 2020) era excitar e trazer de volta a vontade de viver. Passado mais um tempo dessas limitações pandêmicas, a gente só quer conforto e abraço. Não aguentamos mais"
Iara Rennó, cantora e compositora
SEGUNDA ONDA
"Quatro dias antes da gravação, saiu um daqueles anúncios bombásticos de segunda onda, fazendo a gente mudar o cronograma e reduzir o número de pessoas presentes. Nós nos adaptamos às novas condições de produção para garantir que não teríamos contato com gente contaminada e proliferar o vírus", afirma.
Segundo ela, todas as experiências de gravação que viveu durante a pandemia, algumas até em teatros vazios, foram tensas. "Acredito que quem trabalha nos serviços essenciais e precisa sair de casa todo dia acaba se acostumando. Mas para mim, que trabalho em casa todo dia, é uma situação de extrema tensão", diz.
Filha do jornalista e letrista Carlos Rennó com Alzira E, e sobrinha da também cantora e compositora Tetê Espíndola, Iara Rennó iniciou a carreira musical ao lado da mãe. Pouco depois, integrou a banda de Itamar Assumpção como vocalista. Seu primeiro projeto autoral foi o grupo DonaZica, que ela dividia com as cantoras Anelis Assumpção e Andreia Dias.
Seu primeiro trabalho solo, feito com muitos parceiros – "mais de 60", ela pontua –, foi o disco "Macunaíma ópera tupi" (2008). Ela também lançou os discos "Iara" (2013), "Arco" (2016) e "Flecha" (2016), além do mais recente, "Afrodisíaca", de outubro de 2020.
Ao longo de todos esses anos de carreira, Iara pôde contar com a participação de uma série de outros artistas em seus trabalhos, como Elza Soares, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Tulipa Ruiz, Linn da Quebrada e até a atriz Camila Pitanga.
"Eu gosto muito de trocar. Desde o início eu tenho muitas parceiras e parceiros. Gosto muito dessa troca criativa e artística. É estimulante. Como consequência disso, a música reverbera em pessoas que, de repente, não conhecem o meu trabalho ainda. Estar com outros artistas amplia o acesso à minha obra enquanto artista independente, com todas as limitações que isso traz. Mas eu faço porque gosto. Isso me enriquece artisticamente", afirma.
Menos de um ano separa "Pra te abraçar" de "Afrodisíaca". Ainda assim, esses dois trabalhos são completamente diferentes. Enquanto o primeiro é dedicado às canções, o segundo é um registro experimental que reúne poesias, músicas e experimentações visuais.
CONTRASTE
"Gosto muito desse contraste e de experimentar caminhos por onde ainda não fui", ela diz. "'Pra te abraçar' é um registro simples que eu ainda não tinha feito. O resultado é essa coisa mais crua, que conflui com a necessidade do momento que estamos vivendo. Não dá para ficar se aglomerando e fazendo grandes produções. Ele representa essa volta para um universo íntimo."
Já "Afrodisíaca", segundo Iara, é uma provocação. "É como se eu dissesse: 'Você está vivo? Vamos ver se você está se sentindo vivo'. Minha intenção com ele era excitar e trazer de volta a vontade de viver. Passado mais um tempo dessas limitações pandêmicas, a gente só quer conforto e abraço. Não aguentamos mais."
Apesar de cantar sobre a chegada de uma nova era na letra da música "Virá", Iara Rennó não acredita que a pandemia surtirá grandes transformações na sociedade, principalmente positivas. "Tem um certo romantismo nessa visão que eu não compartilho, pelo menos não totalmente. Até um ponto, sim, eu quero acreditar nessa evolução e melhora. Ao mesmo tempo, é uma caixinha de surpresas. A gente não sabe como será a vida depois da pandemia", afirma.
Para ela, uma nova era no Brasil só pode começar com mudanças na política. "Ela só virá com um novo governo e uma nova estruturação sociopolítica e econômica", diz.
"Pra te abraçar" entra numa seleta lista de discos que falam diretamente sobre a pandemia de forma eloquente e poética. Iara Rennó tem noção do peso disso e imagina que, no futuro, esse trabalho pode ajudar a compreender como foi esse período. "Nunca vamos esquecer tudo o que estamos vivendo. Quando as pessoas virem que é um disco lançado em 2021, na hora vão se lembrar de tudo o que está acontecendo."
A pandemia a obrigou a alterar seu modo de vida, que passou a ser muito mais on do que off-line. "Estar nas redes o tempo inteiro é muito massacrante. Virou o canal único e exclusivo para quem acompanha o trabalho dos artistas. Se eu ficar três dias sem fazer um post, parece que eu deixei de existir. Se você não posta, o algoritmo diminui o seu alcance."
Mas a artista reconhece que o problema maior será lidar com os escombros quando a vida for retomada. "Muitas casas de show fecharam ou quebraram. Para quem é artista independente, o circuito diminuiu muito. O abalo dessa estrutura foi bastante grande. Vamos ter que reconstruir tudo. E isso gera um nível de ansiedade muito grande."
“PRA TE ABRAÇAR”
.De Iara Rennó
.12 faixas
.Independente
.Disponível nas plataformas digitais