“Espero que sejamos um casal de velhinhos legais, morando na costa da Irlanda ou algo assim, olhando nosso álbum de recortes de loucuras.” A declaração de John Lennon foi dada à Rolling Stone durante a histórica entrevista concedida ao fundador da revista, Jann Wenner, em 1970. Wenner perguntara a Lennon como ele se imaginava aos 64 anos, fazendo um paralelo com a canção clássica dos Beatles, When I’m 64. Sonhos de um futuro distante para um jovem adulto que recém-completara 30 anos. Pois bem. Se estivesse vivo, John Lennon teria feito 80 no último 9 de outubro. Há quatro décadas, em 8 de dezembro de 1980, a trajetória do icônico cantor e compositor sofreu uma brutal interrupção: Lennon foi executado a tiros em frente ao prédio onde morava, o Dakota, em Nova York, por Mark Chapman.
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Muito se especula sobre o que John Lennon estaria fazendo nestes estranhos tempos de cacofonia urbana, disputa de narrativas sobre a história e intensa produção de conteúdo na internet, seja puro lixo cultural ou arte (esta última, em clara desvantagem). Teria ele sido atropelado pela ferocidade das redes sociais ou estaria fazendo vídeos experimentais pelo Reels do Instagram? Conjecturas à parte, o fato é que sua obra, dentro e fora dos Beatles, segue relevante, emocionando e engajando novos e velhos fãs, aglutinando defensores de uma sociedade menos hipócrita e injusta e incomodando o pensamento conservador.
Há cinco anos, quando o catálogo dos Beatles finalmente invadiu as plataformas de streaming, as músicas do quarteto de Liverpool foram tocadas mais de 50 milhões de vezes somente nas primeiras 48 horas após a disponibilização nos serviços on-line. Sessenta e cinco por cento dos ouvintes tinham menos de 34 anos, gente que não era nem nascida quando a banda anunciou que o sonho estava morto, nada menos do que meio século atrás.
No início de outubro deste inacreditável 2020, o filho de John, Sean, lançou uma coletânea para celebrar o aniversário do pai. Herdeiro de Yoko Ono, ele tornou-se recentemente o guardião legal da obra do ex-beatle. Para continuar a preservar o legado de John, Sean mergulhou fundo no amplo catálogo produzido por Lennon no curto período de vida após o fim dos Beatles. Gimme some truth traz 36 faixas remixadas e masterizadas em estéreo. O box de luxo, lançado em vinil e CD, bem como nas plataformas digitais, mescla hits e canções menos tradicionais do compositor e serve como um cartão de visitas da obra de Lennon às novas gerações.
Tecnicamente, as mixes estão impecáveis e perfeitamente adaptadas para a Era do Streaming. A escolha de faixas também foi certeira e fugiu do clichê que assombra as coletâneas de consagrados artistas multiplatinados. Aqui, não poderiam ficar de fora o hino humanista Imagine; o groove disco de Whatever gets you thru the night, a feliz parceria com Elton John que resultou no primeiro single a chegar ao topo das paradas nos EUA; e o mantra irresistível de Mind games. Mas também há a crueza de Isolation, do seminal álbum de estreia da Plastic Ono Band, Angela, o emocionante tributo à ativista negra Angela Davis, e a delicada Bless you, do disco Walls and bridges.
Jeito inseguro de compor
Diferentemente de vários colegas contemporâneos, Lennon não se referia a si apenas como músico, mas como artista. E, como artista, ele era completo. Artistas não apenas tocam o que a música pede. De modo tão misterioso quanto compõem suas músicas, eles assimilam o contexto apropriado para a execução de uma faixa, mesmo que em nível subconsciente. No caso de Lennon, seja em números furiosos como Cold turkey, ou na melancólica nostalgia de In my life, chama a atenção o fato de que suas canções são embebidas de um caráter arrebatadoramente humano, ora “caleidoscópico”, por vezes ácido e mordaz, ou apenas confessional. E isso não é nada gratuito, menos ainda forçado.
John Lennon tornou-se conhecido por “inventar um jeito inseguro de escrever canções”, como observou Sean, em depoimento ao escritor Philip Norman, autor da biografia definitiva sobre o cantor, The life, lançada em 2008. Faixas como I’m a loser e Help!, nos Beatles, e Mother e I’m scared, na carreira solo — entre tantas outras —, tornaram-se uma referência para gerações de compositores até os dias de hoje justamente pela genialidade de seu pioneiro caráter confessional.
Passados 40 anos de sua morte, John Lennon continua a ser, estranhamente, fruto do nosso tempo. Para o bem ou para o mal. Não é sem propósito que Lennon tornou-se alvo constante de tentativas de reconstrução de sua imagem por parte de influenciadores digitais que, volta e meia, soltam vídeos ou textos com uma “bomba” sobre o cantor, seja explorando sua suposta homossexualidade — a última é um caso com Elton John, história divulgada até pela Rolling Stone brasileira — ou episódios de violência e agressões envolvendo desafetos ou namoradas. Os produtores de conteúdo utilizam, com poucas variações, histórias polêmicas sobre excessos do músico, algumas verdadeiras. Outras são apenas rumores ou meias verdades atiradas fora de contexto.
Em uma época em que o WhastApp pode decidir uma eleição presidencial, ainda é cedo para dizer, mas dificilmente a reconstrução histórica de John Lennon pode diminuir o impacto de sua obra, para não falar do fascínio que sua personalidade exerce sobre o imaginário popular. Tempos ferozes de polarização podem apresentar uma vitrine para que fakes news cumpram sua missão desagregadora no mundo. Mas Lennon não é bobo e já partiu para o contra-ataque, como atesta Gimme some truth:
“Estou farto de ler coisas vindas
De políticos burros, neuróticos e psicóticos
Tudo que quero é a verdade
Me dê alguma verdade”
Na mosca, John.
Fernando Brasil é compositor e jornalista