O escritor Ruy Castro escreveu em seu livro A onda que se ergueu no mar que a bossa-nova foi “um grande verão de banquinhos, joelhos e violões, à beira-mar ou em mar alto”. O banquinho foi ocupado por João Gilberto, Carlos Lyra, Joyce e tantos outros. Os joelhos, sobretudo de Nara Leão, mas também das musas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes que passavam a caminho do mar. O violão, da turma toda. Já a embarcação para navegar o mar certamente foi O barquinho, música de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (1928-1994). E ela foi longe. Agora, quando completa seis décadas, a canção acaba de ganhar uma homenagem inusitada: um clipe que reuniu músicos e cantores japoneses para interpretá-la – em português.
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Sempre revolucionário, Godard chega aos 90 anosRodrigo Quik e Letícia Carneiro abrem a casa em 'De nós dois'Andressa Suíta toma uma posição drástica com Gusttavo lima após ele aparecer com namoradaMas o que fez a canção percorrer o mundo por tanto tempo? Segundo Menescal, são quase três mil gravações em português, inglês, francês, espanhol e japonês. Ganhou 41 gravações de brasileiros – João Gilberto, Elis Regina, Nara Leão, Baden Powell, Altamiro Carrilho, Jair Rodrigues, Fernanda Takai, Rosana e Sandy, entre outros. No exterior, foi gravada por Peggy Lee, Daniel Riolobos, Andy Summers, Karrin Allyson, Rita Reys, Shep Meyers, Stacey Kent, Emilie-Claire Barlow, Carmen Cuesta, Vero Pérez e Lucero.
Menescal não sabe dizer quem levou a canção para o mundo. No Japão, o compositor desconfia que ela aportou quando Sérgio Mendes e Nara Leão fizeram uma série de apresentações por lá nos anos 1960.
O cantor japonês Michinari acredita que os responsáveis por levar a música ao país foram Nara e João Gilberto. “Os dois foram os mais populares cantores da bossa-nova por um longo tempo aqui no Japão”, afirma Michinari.
MAYSA
A primeira pessoa a gravá-la foi Maysa (embora o assunto cause controvérsias), no disco Barquinho, de 1961. “Até falei para a Maysa na época: vê lá, vai gravar O barquinho, de repente o público não vai gostar de te ouvir cantando outro tipo de música. Mas, claro, queria que ela gravasse. O Bôscoli brincava que ela tinha o balanço de um bonde de Copacabana. E, de fato, ela não tinha o suingue da bossa. O arranjo da gravação, feito por Luiz Eça, é fantástico. Quando acabou a gravação, os músicos que tocaram as cordas se levantaram e bateram o arco no violino, aplaudindo. Todo mundo caiu no choro”, lembra Menescal.
Logo depois, Maysa, Menescal e Bôscoli embarcaram para uma temporada na Argentina. Na volta, o compositor descobriu que Paulinho Nogueira e Pery Ribeiro tinham gravado a canção. Menescal mesmo só foi cantá-la um ano depois, no histórico show de bossa-nova no Carnegie Hall, em Nova York.
A gravação está em disco. Nervoso, sem nunca ter se apresentado como cantor, errou a letra. “Estreei no Carnegie Hall. Por muitos anos, fiquei traumatizado com isso”, diz. Ruy Castro ressalta o valor desse registro e o aponta como o seu preferido. “Foi a primeira vez que Menescal cantou em público – e logo no Carnegie Hall! O próprio Caruso (Enrico, tenor italiano) só chegou lá depois de décadas cantando.”
“Uma vez fui para a Austrália e lá tocam O barquinho. Nos países nórdicos, a mesma coisa. Na Rússia, quando fui me apresentar, quando comecei a tocar, todo mundo acompanhou a melodia. Quando voltei lá três anos depois, já cantavam com a letra. Ela tem um borogodó que não sei explicar”, diz Menescal.
ORGULHO
Mas, o que é esse borogodó? O produtor musical João Marcello Bôscoli, filho do letrista Ronaldo Bôscoli, comenta que o pai tinha muito orgulho da composição e definia o parceiro como um craque da melodia, o que ajudava na prosódia e na síncope – essa última, responsável pelo balanço que Bôscoli tanto valorizava.
“Ela tem uma melodia, um som agradável até para quem não entende português. Ela vem de cima, tem intervalos interessantes; quando repousa, reforça esse repouso, e aí tem uma modulação. Na conclusão, é lírica. São intervalos matemáticos perfeitos, o chamado coeficiente divino”, analisa João Marcello.