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MÚSICA

"Há futuro?": Artistas de BH lançam discos sobre o mundo em crise

A banda godofredo se inspira no cenário político do Brasil - Foto: Gabi Fausto/divulgação
Não é de hoje que uma nuvem paira sobre a cena musical belo-horizontina. No passado, ela era “cigana”, como descreveram Ronaldo Bastos e Lô Borges na canção interpretada por Milton Nascimento no disco Clube da Esquina. O tom positivo, no entanto, foi minguando com o passar dos anos e hoje uma nova geração da cena independente parte de um lugar essencialmente melancólico para fazer música.



Prova disso é o trabalho da Tarda, banda formada pelos artistas Júlia Baumfeld, Paola Rodrigues, Randolpho Lamonier, Sara Não Tem Nome e Victor Galvão. No álbum de estreia, Futuro, lançado na última quarta-feira (11), o grupo reflete sobre questões existenciais, experimentando sonoridades que revelam sua vocação para canções melancólicas e ruidosas.

Formada em 2017, a banda nasceu do desejo de Sara e Victor de colocar em prática a ideia de um coletivo artístico que misturasse música, performance, audiovisual e fotografia. No primeiro momento, a dupla convidou Júlia e Paola, formadas em artes visuais. Última aquisição do grupo e único não músico, Randolpho atua como artista visual em vídeo, fotografia, desenho e instalação.
 
Entre a data de formação e o primeiro disco, a Tarda colocou na praça quatro músicas. Ninguém por enquantoVeludaBreath e Buraco de afundar, lançadas entre o final de 2018 e este segundo semestre de 2020, já mostravam que o registro seria uma junção bem-feita de referências que remontam ao passado, ao mesmo tempo em que apontam para o futuro.



“A última vez em que a banda inteira se encontrou foi no carnaval”, explica Sara. “Fomos surpreendidos pela pandemia e no momento em que estávamos espalhados por lugares diferentes: eu e Júlia em BH, Victor e Paola em São Paulo, Randolpho em Paris. Para nossa sorte, sempre fomos muito atentos a documentar todo o processo de produção. Quando nos vimos impossibilitados de nos reunir, a saída foi recorrer a esse material e aos encontros on-line.”

Por sorte ou ironia do destino, boa parte do trabalho estava em vias de ser finalizada. À exceção de Veluda, os outros três singles estão entre as 11 faixas do disco, entre músicas de natureza triste e discursos políticos.

Algumas canções, como Hilda Pantasma, são paisagens sonoras que reúnem áudios de Hilda Hilst, Clarice Lispector e da ex-presidente Dilma Rousseff. Em outras, os integrantes citam o poeta português Fernando Pessoa e o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin.



Lançado num momento em que é difícil vislumbrar o amanhã, Futuro é a forma que a banda encontrou de falar sobre o presente.

“Chega um momento em que a gente precisa aceitar que as coisas deram errado”, diz Sara, citando o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984). “É preciso aceitar que certas ideias não nos servem mais e, para continuar, é preciso que aconteçam algumas mudanças. Tentamos falar sobre esse tipo de angústia e sobre como não cabemos mais num mundo criado no passado. Estamos assistindo à queda da sociedade como um todo, é o momento de sonhar.”

É por isso que em algumas faixas o disco partepara um universo onírico. Em Paranoid quarto, por exemplo, Paola demonstra talento para o spoken word – a música é uma poesia que descreve catástrofes em inglês e em português. Em Eco, o disco ganha tonalidade psicodélica, e em Liturgia das horas, majoritariamente instrumental, a banda cria o universo urgente que gira em torno de uma simples pergunta: “Cadê você?”.

Tudo isso, por mais melancólico que possa parecer, culmina na faixa-título, que começa com sons de ondas do mar e se constrói entre dedilhados de guitarra e vozes reverberadas. A letra fala sobre a ideia de se desvencilhar do passado para viver o porvir. “Há futuro?”, questiona o verso da canção.


 

 
 

Arquivos nostálgicos 

 

O músico Wagner Almeida canta sobre a vida num centro urbano como Belo Horizonte - Foto: Henrique Gomes/Divulgação
Se o caminho importa mais que o destino, a banda godofredo (escrito assim, em minúsculas) cria uma jornada pessoal, memorialista, universal e cheia de referências no álbum de estreia Arquivos vol. 3. Disponíveis nas plataformas digitais, as 10 faixas são guiadas pela nostalgia, atentas ao atual cenário social e político do Brasil, também de olho nas incertezas do futuro.

Até formar a banda, os três músicos que a integram percorreram uma trajetória por outros grupos mineiros. Vinicius Cabral (voz e guitarra) passou pelas bandas Videotroma, Picnic no Front e The Innernettes. Munido de composições então inéditas, ele convidou André Pádua (voz e guitarra) e Matheus diRocha (baixo) para acompanhá-lo. O primeiro integrou a Padawan e o Ereção de Elefante, o segundo soma passagens pela Dom Pepo, Pequeno Céu e Novos Baianos F.C.

Desse encontro surgiu uma banda incongruente, que se localiza entre o dreampop, o shoegaze e o rock progressivo. Essa mistura serve de base para letras inquietas que passeiam por temas como a autocrítica masculina, insegurança, política e utopias.



O disco, que começa com Medo e vai até a derradeira Calma, reúne canções escritas entre dezembro de 2018 e julho de 2019. Assinada por André Pádua, a produção entrega faixas que unem os vocais agudos de Vinicius a um instrumental “sujo”, algo que a banda descreve como “indie lo-fi”. A mixagem e a masterização são assinadas por Bruno Leo.

“Todas as composições nasceram acompanhadas por um processo interior. Eu passava por mudanças físicas e psicológicas muito intensas. Crise financeira, crises afetivas, isolamento social, mesmo antes da pandemia”, explica Vinicius Cabral.

“Em crise com meus próprios valores, comecei a experimentar com tintas e processos manuais, enquanto arranjava o álbum com Dedeco (André Pádua). O nome Arquivos veio de uma tentativa de catalogar memórias e obras perdidas, jogadas pelo apartamento”, revela Vinicius.


 

 
 

Mergulho em BH



Num movimento semelhante ao da banda godofredo está o trabalho de Wagner Almeida. Em Campeão da avenida, lançado pela Geração Perdida de Minas Gerais, o mineiro reflete sobre a vida num centro urbano como Belo Horizonte. Com nove faixas e participação de Ana Paia (em Acorda) e Theuzitz (em Perdoar), o trabalho conta com momentos que referenciam diretamente locais da capital, como é o caso de Avenida; e outros em que o artista percorre um mergulho interior, como em Afogar Piloto automático.

O disco traz ainda bons momentos como Frank OceanCarta de vinhos e Cortar, que provam estarem intactas as qualidades que Wagner apresentou nos discos Crescimento/desistência (2018) e Domingos à noite (2019), e nos EP's Sonho violento (2019) e Sonho violento pt. 2 (2020).