Inicialmente um projeto do casal Salma Jô e Macloys Aquino, a banda goiana Carne Doce experimenta uma trajetória de sucesso na cena independente brasileira. Bons de palco, eles estrearam em 2014 com um álbum homônimo, ganharam projeção nacional após o lançamento do disco Princesa (2016) e se consolidaram com o elogiado Tônus (2018), trabalho que rendeu uma turnê internacional.
Seguindo o padrão de um lançamento a cada dois anos, o grupo – também composto pelos músicos Aderson Maia (baixo), Fred Valle (bateria e percussões) e João Victor (guitarra, sintetizador e programações) – libera nesta sexta-feira (18) seu quarto disco de estúdio, no qual demonstra disposição para renovar a sonoridade já consolidada e atingir novos públicos.
Intitulado Interior, o trabalho começou a ser divulgado no início do ano, com a chegada do single Temporal, em janeiro. Com quase oito minutos de duração, a faixa abre o disco e trata dos problemas ambientais.
Pouco depois da divulgação do single, o mundo como o conhecíamos “acabou”, de certa forma, e a banda se viu numa encruzilhada. ''Já tínhamos anunciado o disco, gravado algumas canções, mas a principal dificuldade foi terminar de gravar, já que a gente não podia aglomerar ou entrar em estúdio. Até cogitamos soltar um EP com menos músicas, mas esse formato não fazia muito sentido para nós. A solução foi fragmentar as gravações e também fazer algumas em casa'', conta Salma.
Vocalista e letrista do grupo, ela explica que o interior presente no disco é no sentido amplo da palavra. ''Por ser de Goiânia, já fomos bastante tachados de fazer um rock regional, o que eu acho que não explica de verdade o nosso som. O interior do Brasil, o que quer que isso signifique, é muito diverso. Então, o que a gente está tentando dizer é desse lugar geográfico, claro, mas também no sentido de interior da alma, de canções que falam de sentimentos pessoais.''
ÓDIO VIRTUAL Meses antes da chegada do álbum, o quinteto divulgou três músicas inéditas: Passarin, Saudade e A caçada – essa última baseada num conto homônimo de Lygia Fagundes Telles. Na última terça-feira (15), eles liberaram, de surpresa, o single Hater, um samba indie sobre inveja, ressentimento e ódio na era das redes sociais.
Salma, que já vivenciou um desses linchamentos virtuais, afirma que a música é mais um comentário sobre essa prática do que uma resposta aos seus detratores. “Não acredito que a música nos inocenta aos olhos de quem acha que somos culpados. Essa letra observa essas pessoas que sentem um enorme prazer em odiar os outros e também aponta que, no meio desse ódio, tem uma espécie de adoração. E é engraçado porque quem odeia começa a desenvolver uma relação com aquilo que tanto rejeita'', diz.
Depois de escrever sobre o contraste entre o campo e a cidade (Sertão urbano), pautas feministas, como o aborto e o lugar de fala (Artemísia e Falo) e a instabilidade política do Brasil (Golpista), Salma descreve a atual realidade do país em Fake, música sobre ''um mito heroico virtual''.
Mas é fato que o disco não se sustenta somente em assuntos controversos, como prova a música-título, cuja letra otimista é uma novidade no repertório da banda. A triste e etérea faixa A partida, por exemplo, aborda o luto. ''Meu amigo agora é infinito/ Não vai mais brincar/ Me deixou pra sempre de castigo/ Esperando te encontrar'', canta Salma sobre as certeiras linhas de baixo de Aderson Maia.
Sonho e Cérebro bobo aproximam a banda do experimentalismo. A primeira, com uma letra filosófica, constrói uma ambiência particularmente idílica. A segunda, feita a partir da junção inusitada de bateria e voz, destaca o talento de Fred Valle, que passou a integrar a banda no ano passado.
Em todas as faixas, é interessante observar o quanto Salma Jô mudou o seu jeito de cantar, antes mais explosivo. ''No começo da Carne Doce, eu era mais ansiosa, até com essa questão de palco. Então, a melhor saída para isso é gritar. Com o tempo, fui percebendo que poderia tratar minha voz com mais sutileza.''
Destaque do disco, a faixa Garoto traz, pela primeira vez, os vocais de Macloys. Dançante e suingada, a música é sobre o jogo de sedução. Além disso, ela é a mais pop do disco, característica que acaba escapando para o restante das faixas.
''Acredito que isso acontece porque o disco é o mais solar e divertido que a gente já fez. Estamos mais calmos. Qualquer banda que constrói uma carreira passa por essa necessidade de impactar ou ser ousada. No começo, a gente era mais revoltado, mas agora que atingimos certa maturidade, encaramos a vida de outra forma. Por que não tentar uma sonoridade mais aberta e acessível?'', afirma Salma.
A resposta está num disco cuja principal qualidade é a incongruência, mas, no conjunto, representa uma banda que aponta para o futuro. Precisa, a produção de João Vitor (que já virou uma assinatura do grupo) não deixa a Carne Doce se afastar demais da identidade construída ao longo desses sete anos de carreira.
Depois de 11 faixas se afastando desse universo, eles provam que ainda estão conectados com o próprio passado na derradeira De graça, cuja sonoridade não deixa mentir: o antigo Carne Doce ainda mora ali.