Governador Valadares – Eles são chamados de Vovôs do Rock pelas pessoas que assistem ao pequeno vídeo em que cantam California dreamin', hit do grupo The Mamas & The Papas lançado em 1965.
A performance viralizou nas redes sociais e conquistou internautas, que se encantam com a dupla, mesmo sem saber de quem se trata. Entre os comentários, há quem suponha que os dois vivam no Lar dos Velhinhos de Governador Valadares, na Região Leste de Minas Gerais.
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A suposição é meia verdade. Lúcio Ribeiro, de 72 anos, e Sebastião Marcos Ribeiro, de 68, são mineiros. Moram em Governador Valadares com as respectivas famílias, isolados nestes tempos de pandemia, cercados pelos filhos e netos.
O vídeo foi gravado por acaso por Davidson Dornelas, que apenas quis registrar o momento em que Lúcio e Tião Marcos prestavam homenagem ao comerciante Sílvio Vicente Ferreira, amigo que morrera há poucos dias, de câncer. “Foi um momento triste para nós, o Sílvio era um querido de todos”, diz Tião Marcos.
SAUDADE
Da tristeza à alegria, da melancólica letra de California dreamin' a mensagens parabenizando os Ribeiros pela performance, está a saudade. Não somente do amigo, mas dos tempos em que a dupla era aplaudida por imensas plateias. O vídeo, compartilhado por vários canais, já soma cerca de 500 mil visualizações. Só no canal do guitarrista Maurício Alabama, são 53 mil views.
Poucos conhecem a trajetória musical de Lúcio e Tião Marcos, até mesmo os conterrâneos de Governador Valadares. Autodidata, a dupla aprendeu a tocar instrumentos de corda na era analógica, em meados de 1960. E não foi um aprendizado fácil.
“A gente tinha de ouvir longplays várias vezes para decorar as letras e colocar as cifras, coisas que hoje em dia estão à disposição de todos no Google”, comenta Lúcio. Fã das bandas Beatles e Rolling Stones, a praia dele era, mesmo, o rock instrumental – como aquele feito pelo grupo Os Incríveis, que no início da carreira se chamava The Clevers.
Quando a banda paulista adotou o nome definitivo em português, Lúcio e amigos batizaram seu grupo como The Clever Boys. Nos anos 1960/1970, eles animaram muitas festas em Governador Valadares e outras cidades do Leste de Minas.
“Era um tempo muito bom, a gente tocava em bailes e nos programas de auditório da Rádio Por Um Melhor, aqui de Valadares”, relembra Tião Marcos.
Tião entrou no mundo da música de forma inusitada. Durante um baile realizado no Clube Metrópole, em Valadares, a banda fez uma pausa. O contrabaixista desceu do palco, abraçou um “brotinho”, como se dizia na época, e sumiu. “Foi dar uma namoradinha”, conta Tião. O intervalo se esgotou e a plateia se irritou com aquele palco vazio.
“Um amigo me chamou. Pediu para quebrar o galho, pegar o contrabaixo e me juntar aos músicos, evitando o apedrejamento dos donos do clube. Subi e toquei. Quando o contrabaixista voltou, ele já estava desempregado”, relembra Tião. A estreia forçada abriu caminhos para que tocasse outros instrumentos de corda, como violão, guitarra e ukelelê. “E bateria também”, diz.
EDUARDO ARAÚJO
De Governador Valadares para os palcos do Brasil, foi um pulo. Se atualmente os irmãos Ribeiro são os Vovôs do Rock, no auge da Jovem Guarda eles ficaram conhecidos como Garotos Incríveis. Ganharam a confiança do cantor e compositor Eduardo Araújo, mineiro de Joaíma, que no fim dos anos 1960 estourou com o hit O bom. Ao lado da mulher, a cantora Silvinha, o roqueiro era destaque nas paradas de sucesso.
“Fizemos turnê com Eduardo Araújo por vários estados. Rodamos por muitas cidades da Bahia e do Nordeste, nos apresentamos para grandes plateias”, relembra Lúcio, com saudades daqueles tempos.
Tião Marcos diz que Eduardo preferia que ele acompanhasse Silvinha nos vocais, principalmente em Ave-Maria no morro e Salve, salve, brasileiro. Essa última canção fala de Minas Gerais e, segundo Tião Marcos, “levantava a plateia”, principalmente quando eles cantavam “êh! Minas Gerais/ Minas Gerais é terra boa, sou mineiro não é à toa/ O Cruzeiro de Tostão,/ e o Galo campeão/ O mineiro não compra bonde/ pois inventou o avião”.
Cruzar o país com Eduardo Araújo fez com que os irmãos Ribeiro tivessem contato com astros da música brasileira. Roberto Carlos foi um deles.
ROBERTO CARLOS
Em São Paulo, no início de 1970, os dois mineiros participaram de um megashow na festa de aniversário do radialista, cantor e apresentador Barros de Alencar. Vários artistas se apresentaram no estádio do Corinthians, o Parque São Jorge, com direito a premiação. “No fim de tudo, subimos ao palco para tocar e receber o prêmio pelo segundo lugar. O primeiro, sabe quem recebeu? Roberto Carlos”, conta Lúcio.
Depois daquela noite gloriosa, os irmãos se apresentaram na TV, um luxo para a época. “Tocamos na Buzina do Chacrinha, lá na Urca, no Rio de Janeiro, no Almoço com as estrelas, programa da TV Tupi comandado pelo casal Airton e Lolita Rodrigues, e em vários outros”, enumera Tião Marcos.
Os dois também se apresentaram com Zé Geraldo – autor do hit Cidadão (“Tá vendo aquele edifício, moço?/ Ajudei a levantar...”), além de Paulo Sérgio e Fernando Mendes, cantores muito populares nos anos 1970.
O mundo analógico ficou para trás. O tempo rebobinou caprichosamente os fotogramas que registraram a carreira dos Garotos Incríveis. Lúcio e Tião Marcos agora vivem na era digital, em que frames de um vídeo com milhares de visualizações mostram rostos trabalhados pelo tempo, mas esbanjando vitalidade.
PANDEMIA
Vitalidade, aliás, cara a eles. Lúcio venceu a COVID-19, meses atrás. Já está bem, pronto para o trabalho. Tião Marcos enfrentou dias difíceis por causa de uma depressão, que quase o tirou do combate. Mas a vida segue e a dupla se impressiona com o alcance de suas canções nas redes sociais.
Como não têm habilidade para lidar com tantas inovações tecnológicas, os dois são orientados por filhos e netos, especialmente a jornalista Amanda Ribeiro, filha de Lúcio. “Amanda vai fazer um canal no YouTube pra gente. Fala até em promover lives”, revela ele, encantado com a novidade.
Ícaro Lugão, de 34 anos, músico da banda valadarense Cavalo Motor, quer contribuir com os Vovôs do Rock. “Estou à disposição deles para irmos ao estúdio gravar. Depois, subimos as músicas para as plataformas digitais”, planeja.
Assim, Lúcio e Tião Marcos seguem a carreira num mundo diferente daquele dos anos 1970, rompendo fronteiras e recebendo o carinho de quem os conhece como os Vovôs do Rock, sem imaginar que os simpáticos cantores foram, um dia, os The Clever Boys, garotos incríveis da Jovem Guarda.