Ingressar no universo musical construído por Negro Leo não é uma tarefa fácil. Alguns amigos, segundo ele, até comparam seus discos a um ouriço ou a um campo minado. Ou seja, é preciso ter bastante atenção para captar as mensagens que o artista transforma em música.
Desejo de lacrar, seu novo registro de estúdio lançado pelos selos YB Music e QTV, corrobora essa premissa. O trabalho funciona como uma tese sobre a necessidade de se afirmar na internet e como isso se reflete nas relações humanas.
“Não tive o interesse de deixar a coisa clara e também acho que não poderia ser assim. Esses assuntos são complexos mesmo”, comenta o músico maranhense radicado em São Paulo.
Criada pela comunidade LGBTQ%2b, a gíria “lacrar” nasceu como sinônimo de “arrasar”. Mais tarde, instalou-se no campo político como forma de glorificar uma argumentação incontestável, sem brecha para críticas ou defeitos. Mas Negro Leo vai além e considera o “lacre” uma mentalidade e uma prática discursiva.
“É fundamental ter em mente que já havia um dispositivo lacrador antes do termo nascer. Ele talvez advenha das novas relações sociais que as tecnologias de informação e a internet desencadeiam. É um novo modo de vida e o lacre faz sentido nele”, aponta.
“O Brasil é um país transfóbico, homofóbico e racista. A palavra 'lacrar' surge nesse contexto de invisibilidade e assume uma característica de revolta que, com o tempo, foi se tornando um discurso associado à destruição argumentativa do inimigo. Acredito que tenha sido nesse ponto que a ideia, o comportamento e a atitude da lacração emergiram em todas as esferas da sociedade brasileira.”
JUNHO
Para Negro Leo, as chamadas Jornadas de Junho de 2013 foram o primeiro movimento social lacrador em razão da difusão dos protestos, que inicialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente nas principais capitais do país.
“Depois, a Dilma foi 'lacrada' injustamente em 2016, num movimento que capturou a forma de vida lacradora e passou a emulá-la. Daí vem Bolsonaro, que é o lacrador negativo”, analisa.
“Hoje ela se tornou uma gíria interdita, sobre a qual não se pode pensar. E por que isso? Por que é impossível admitir que ela carrega também a força disruptiva da revolta. Não é sobre encerrar o assunto, simplesmente. Lacrar tem raiz que se origina no reconhecimento de que a justiça é impossível.”
De forma inexata e torta, todo esse conceito está presente nas 10 faixas do trabalho, que vai do jazz ao experimentalismo eletrônico, sempre compromissado a expandir as possibilidades dos ritmos que reproduz.
Ao longo do disco, o objeto de desejo destacado no título é usado à exaustão, como revelam os títulos das faixas Eu lacrei, Absolutíssimo lacrador e Tudo foi feito pra gente lacrar.
E muito embora ele seja fortemente firmado num conceito, o disco também guarda momentos divertidos, como em The big one, exemplar cacofônico e psicodélico, e Dança erradassa, cujo arranjo revela uma inclinação vanguardista na construção dos versos, aliados ao instrumental quebradiço.
Para a realização do álbum, o músico contou com a ajuda de Fábio Sá (baixo, arranjo de cordas), Chicão (sintetizadores, piano), Lello Bezerra (guitarra), Everton Santos (programação) e Sérgio Machado (bateria, percussão, programação e sintetizadores), que também assina a coprodução.
O resultado preserva e ao mesmo tempo perverte o que Negro Leo vinha produzindo em seus trabalhos anteriores, como em Niños heroes (2015), Água batizada (2016) e Action lekking (2017).
DESEJO DE LACRAR
Negro Leo
YB Music e QTV
Disponível nas plataformas digitais