'Hinos' expressam a agonia destes dias de quarentena

Artistas listam canções emblemáticas destes tempos de pandemia

Estado de Minas 23/06/2020 07:57
Ana Alexandrino/divulgação
"Que fase louca/ Que fase doida/ Que ano é esse?", diz Alinhamento energético, canção composta por Letrux (foto: Ana Alexandrino/divulgação)
Se há alguém com autoridade para falar de hino é Fafá de Belém. A cantora marcou seu nome na história política do país ao participar dos comícios pelas Diretas já, ocorridos entre 1983 e 1984.

Na ocasião, emprestou a voz para canções emblemáticas como Menestrel das Alagoas, de Fernando Brant e Milton Nascimento, e, claro, para o Hino Nacional.

Para Fafá, o hino da quarentena, a música que melhor representa este momento de pandemia da COVID-19, é Alinhamento energético. “Ela é premonitória. Quando me mostraram essa canção no ano passado, alguma coisa me tocou na alma. Hoje, essa música é o que foi o Menestrel das Alagoas nas Diretas já”, afirma.

A canção diz assim: “Se você achou que ano passado foi intenso/ Cê não sabia de nada, inocente/ Cê não sabia de nada/ Se você jurou que seu projeto ia vingar/ Cê não sabia de nada, inocente/ Cê não sabia de nada/ Que fase louca/ Que fase doida/ Que ano é esse?/ O que é que vem depois?/ Eu tô exausta, eu tô perdida/ Já me disseram que só começou”.

A composição é da cantora Letrux (nome artístico de Letícia Pinheiro de Novaes) e foi escrita em 2016. Foi gravada por Fafá no álbum Humana, lançado no início de 2019 – bem antes de qualquer sinal do novo coronavírus.

“A voz da Fafá, a interpretação dela, é singular, pontual. Eu babo. Apesar de ser uma pessoa dada como otimista, sempre fui consciente de que o mundo estava caminhando para um lugar terrível. A história do mundo é horrível, desgraçada, se a gente não respira e acha umas horinhas para alegria, é tristeza na certa. Todo ano, eu achava que alguma coisa, um projeto meu ia vingar. E todo ano vinha uma porradinha. Então, a música veio desse lugar, esperando um eterno Godot e respirando nos intervalos”, conta Letrux.

A apresentadora e radialista Roberta Martinelli também cita a canção de Letrux. “É o hino da quarentena que canto todos os dias. É uma composição que, a cada fundo do poço alcançado, ganha um novo sentido”, diz.

Martinelli destaca outra canção emblemática para estes tempos de coronavírus. “Em dias mais otimistas, o hino é Amanhã, de Guilherme Arantes. As duas juntas (Alinhamento energético e Amanhã) dão a real cara do isolamento. São altos e baixos, dias de esperança e outros em que estamos prestes a pirar”, completa.

A letra de Guilherme Arantes é clássica: “Amanhã será um lindo dia/ Da mais louca alegria/ Que se possa imaginar”. Essa canção é também a escolha da cantora Vanessa da Mata. “É cheia de esperança, pop, bonita e bem-feita”, afirma.

O cantor e compositor Maurício Pereira elege Jeca total, de Gilberto Gil, como o hino da quarentena. “Jeca total deve ser Jeca Tatu/ Presente, passado/ Representante da gente no Senado/ Em plena sessão/ Defendendo um projeto/ Que eleva o teto salarial no sertão”, diz a letra.
Henrique Thoms/divulgação
Zeeba compôs Tudo que importa durante a quarentena (foto: Henrique Thoms/divulgação)

“Jeca total me conta do abraço da quantidade louca de informação e possibilidades com a ignorância bruta da gente, o baixo-ventre, justamente num momento em que todo mundo acredita que tem uma opinião definitiva sobre tudo. É como se, mansamente, melancolicamente, o Gil cantasse pra nós a fórmula da nitroglicerina”, explica Pereira.

A apresentadora Sarah Oliveira foi buscar em clássicos da Legião Urbana os hinos deste momento. “Teatro dos vampiros e Perfeição são atuais demais. Parece que Renato escreveu hoje”, comenta. “Quando me vi, tendo que viver comigo apenas e com o mundo”, diz a letra de Teatro... “Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro e feriado/ Todos os mortos nas estradas/ Os mortos por falta de hospitais/ Vamos celebrar nossa justiça/ A ganância e a difamação/ Vamos celebrar os preconceitos/ O voto dos analfabetos/ Comemorar a água podre/ E todos os impostos/ Queimadas, mentiras e sequestros”, canta Renato em Perfeição.

INSPIRAÇÃO 

A quarentena tem sido um período de inspiração para muitos artistas. O cantor e compositor Zeeba lançou Tudo que importa. “A canção fala sobre estar perto de quem realmente importa. Quando a gente perde as coisas é que dá valor. Diz o autor dos versos: ‘Posso até sonhar/ Quando existe alguém/ Pronto pra viver por perto, vem’.”

Eduardo Bologna, instrumentista, compositor e produtor musical, procura identificar as características que podem transformar uma canção em algo imprescindível nesta quarentena. “Percebi que tenho ouvido muitas canções com característica mais descritiva, tipo lugares e personagens marcantes. Sabe aquele lance de descrever uma paisagem e você se sentir dentro da cena, observando e ao mesmo tempo interagindo com aquelas pessoas? Tem tudo a ver com este período de afastamento social”, explica.

“Uns caras são mestres nisso: Leonard Cohen, Chico Buarque, os caras do The Band”, lista Bologna. “Não sei se consigo explicar muito bem, mas pegue The weight, do grupo The Band, e você vê um quadro, um filminho passando. Tem isso em Cotidiano (Chico Buarque), em Sky blue sky (Wilco), em Jockey full of bourbon, Hold on e Telephone call from Istambul (Tom Waits).”

Bologna diz que se for para escolher apenas uma canção, o hino da quarentena, para ele, é You can never hold back spring, de Kathleen Brennan e Tom Waits. “Há delicadeza e elegância, o que está faltando nos dias de hoje”, afirma.

DUA LIPA 

O cantor e ator Tiago Abravanel escolhe o hit da cantora inglesa Dua Lipa, Don’t start now. “Essa música representou muito. Eu e meu marido ficamos muito em cima do Big brother Brasil e a canção tocou muito no programa”, conta.

A cantora Paula Santisteban busca na música instrumental o equilíbrio para os dias de quarentena. “Brad Mehldau é o pianista que mais gosto de ouvir. Sempre que preciso de equilíbrio e de olhar um pouco pra dentro, conversar comigo mesma, escuto-o tocar. Deve ser porque ele tem equilíbrio perfeito entre a mão direita e a esquerda, entre técnica e sensibilidade. Nestes tempos por trás das janelas, é como uma bebida certa, um livro certo, uma oração, um abraço. Bewitched, bothered and bewildered, especificamente, amo mais do que todas.”

MAIS SOBRE MUSICA