Dolores Dala, guardião do alívio é o novo trabalho do rapper Rico Dalasam (disponivel nas plataformas digitais desde o fim de maio) e aquele no qual ele redireciona sua carreira, que havia tendido para o pop desde que ganhou projeção nacional, em 2015. Trata-se de um EP enxuto. Das cinco faixas, três delas são músicas propriamente, e as outras duas são interlúdios com falas importantes para situar a narrativa contida ali.
Na faixa de abertura, DDGA, o rapper de Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, abre o jogo. “Não falaria de alívio se não tivesse doído tanto/ Tanto que eu não pude ser o mesmo ou o mesmo de antes”, declama ele, em tom confessional, sob um instrumental que mistura synths, piano e sanfona.
“Dolores Dala é um espírito do tempo dentro do reino das fábulas. E esse título é comprido assim para enaltecer esse gênero literário. O nome também vem de dor, só que decidi colocar em espanhol, com o intuito de situá-lo como originário da América Latina”, explica.
Resultado do que o artista chama de ''práticas de ausência'', o trabalho começou a nascer nos últimos meses de 2017, quando Rico considera que passou a recalcular para onde sua carreira estava caminhando.
“Naquele momento, eu parei e comecei a rever as concessões e negociações que fiz para chegar onde estava. A partir disso, pude estabelecer o que escrever, como escrever, qual sonoridade gostaria de abordar e, narrativamente, o que fazer com tudo isso.”
Mudou como?, segunda faixa do registro, comprova a qualidade das escolhas, em especial a dos parceiros Mahal, produtor musical e ex-integrante do BaianaSystem, e Chibatinha, do grupo ÀTTØØXXÁ. A canção soa como um desabafo de alguém que sofreu por amor, máxima que está presente no restante do disco. E, apesar de alguns versos serem raivosos, a construção é delicada e a sonoridade, indefinível.
INVERSÃO ''A gente chegou nesses beats porque queríamos inverter, de fato, o código. Saio de uma fase em que eu estava flertando abertamente com o pop, com direito ao que tudo isso significa, e pude recobrar o ponto de partida e recalcular a minha rota. As escolhas de timbres que fiz para esse trabalho são especiais, porque soam estranhas. Eles não estão exatamente dentro de um gênero musical. Não é um pagodão, um samba-reggae, um brega-funk, um funk 150bpm'', diz.
Prova disso é Braille, também produzida pelo parceiro de longa data Dinho Souza, que traz uma série de metáforas para retratar as questões que envolvem um amor inter-racial.
''Sou uma pessoa muito feliz e realizada com o jeito que essa canção alcançou as pessoas e aborda essa discussão'', afirma Rico. ''Mas o que é fundamental sobre ela é que a música realiza uma construção muito importante sobre os nossos afetos, coisa que não existe. Não existe uma cartilha sobre o amor no caso das bichas pretas. Porque não é só ir lá e se relacionar. Estamos falando de um país que perpetua, todos os dias, uma ordem colonial. Isso, sem dúvida, acaba esbarrando nos nossos afetos.''
''Caro menino branco, esse nosso encontro pede a lucidez/ De saber o lugar que me encontro, e você, por sua vez/ Se é pra andar ao meu lado/ Saiba que alguém foi senhor, alguém foi escravo/ E, entre nós, esse ‘espaço’ pede alguns passos'', diz o rapper, no meio da canção.
Na faixa seguinte, Circular 3, a voz da mãe de Rico Dalasam entra em cena para aconselhá-lo sobre a melhor linha de ônibus para cruzar São Paulo. Em Vividir, responsável por encerrar o trabalho, ele parece prestar contas à própria história. Desde que surgiu para o grande público, em 2015, ocupando um lugar inédito na música brasileira, a do rapper queer, Rico Dalasam esteve em diferentes cenas.
De lá pra cá, lançou dois EPs – Modo diverso (2015) e Balanga raba (2017) –, além do disco Orgunga, em 2016. No meio tempo, abriu show do Racionais MCs, fez parcerias com Emicida e Curumin, e viu sua música com Pabllo Vittar, Todo dia, virar hit do carnaval em 2017.
''São tantos os pedaços/ Soltos pelo mundo/ Juntos num abraço'', canta ele, afinal, na última canção.
A frase também se relaciona com a presença de Rico no disco de estreia da multiartista Jup do Bairro, Corpo sem juízo, lançado no último dia 11. Ao lado de Linn da Quebrada, o rapper canta em All you need is love, um funk que nada tem a ver com a canção de 1967 dos Beatles.
''Trabalhar com elas é uma realização ancestral'', comemora Rico Dalasam. ''Somos corpos periféricos, pretos, discutindo e defendendo humanidades e afetos dentro de contextos de sexualidade. E isso é fundamental, porque funda um lugar inexistente na nossa cultura.''
IMAGINÁRIO Jup concorda e endossa a fala do parceiro musical. ''Quero que conheçam a minha história, mas que não termine em mim, quero impulsionar outros corpos novas criações de imaginário, fortalecer redes afetivas e torná-las efetivas.''
Natural do Valo Velho, região extrema do Capão Redondo, bairro na capital paulista, ela faz sua versão do processo de morte e renascimento em um EP construído por diversos gêneros e formas de abordar os temas que são do seu interesse. Em sete faixas, o trabalho discute sexualidade, política e o corpo como elemento de ruptura.
''Entendo que a morte acontece de várias maneiras, inclusive em vida. Algumas dessas vidas que vivi tive que sacrificar para me tornar quem sou hoje. Acredito que, quando buscamos a necessidade de não caducar às novas possibilidades de vida, existência e performatividade do que já fomos, não somos mais as mesmas pessoas. Abrimos mão de crenças para que sejam substituídas por novas. Essa ausência de juízo vem justamente em aceitar essas mudanças que percorrem minha mente e meu corpo'', conta ela.
Autodidata e educada pela televisão, o gosto pela escrita começou aos 13 anos, quando ainda não tinha pretensões artísticas e gostava de materializar seus pensamentos e memórias no papel.
''Existem letras que escrevi há mais de uma década e outras que compus no processo criativo do disco. Acredito que as antigas de que abri mão não me eram mais urgentes, não me pertenciam mais. Mas outras ainda me fazem sentido'', explica.
Ao longo de quase 30 minutos, o trabalho é uma espécie de tratado sobre um corpo incômodo e incomodado. O EP flerta com vertentes da música pop mundial, traz uma sonoridade bastante atual e, além de Rico e Linn, também conta com a participação de Deize Tigrona no improvável hard rock Pelo amor de Deize.
Destaque para a faixa de abertura, Transgressão, em que a incomum voz da artista é embalada por um instrumental envolvente e crescente, que explode no refrão. A produção dessa e das outras canções do EP é assinada pela produtora BadSista.
''Temos gostos musicais muito parecidos, e acho que isso se dá por pertencermos à mesma geração de consumo musical e, de alguma forma, geográfica, já que ela vem do extremo Leste de São Paulo e eu, do extremo Sul. Periferias distintas, mas com uma grande produção de arte e cultura marginal'', afirma.
Quinta faixa do registro, Luta por mim é a canção mais urgente do trabalho. Ao longo de mais de seis minutos, Jup do Bairro fala sobre as lutas e resistências que enfrenta por ser uma transexual preta. A música também conta com a participação do rapper Mulambo.
''É uma triste coincidência que faixas escritas há tanto tempo ainda façam sentido na urgência do cenário atual'', lamenta. ''Isso demonstra que o racismo nunca deixou de existir, as dores que a estrutura do sistema causa nesses corpos sempre foram presentes. A diferença é que ela veio se sofisticando a ponto de acharmos que havia diminuído ou sido aniquilada.''
DOLORES DALA, GUARDIÃO DO ALÍVIO
De Rico Dalasam
Independente
Disponível nas plataformas digitais
CORPO SEM JUÍZO
De Jup do Bairro
Independente/Tratore
Disponível nas plataformas digitais
TODO DIA
Retirada das plataformas digitais desde 2017, a canção Todo dia deve retornar ao streaming em breve. Rico Dalasam e os produtores Rodrigo Gorky e Arthur Gomes entraram em um acordo sobre os direitos autorais da faixa. A partir de agora Rico, Gorky e Gomes receberão direitos proporcionais e correspondentes às funções de autores e intérpretes da canção. Um dos maiores hits da carreira de Pabllo Vittar, ela foi lançada como parte do disco Vai passar mal (2017), o primeiro registro de estúdio da cantora. Entretanto, após uma batalha judicial, a canção precisou ser retirada das plataformas.