Na saída do campo, porém, ele, então com 13 anos, quebrou o protocolo e abriu uma faixa vermelha pedindo pela demarcação das terras indígenas.
Seis anos após o protesto, que repercutiu internacionalmente, a causa defendida por esses povos segue sem avanços significativos. E Werá, hoje aos 19, faz uso da música e da literatura para dar visibilidade à realidade de seu povo.
''É um costume na nossa aldeia ir à noite na casa de reza, fumar o nosso cachimbo e entoar cânticos pedindo força'', conta. ''Nós, os guaranis, temos uma ligação muito forte com a música, e isso foi o que me levou a gostar de rap. Nas minhas músicas e na literatura nativa que produzo, escrevo sobre o meu povo e a nossa luta.''
Para apresentar as rimas do que chama de rap indígena, ele assume o nome artístico Kunumi MC – uma derivação de ''curumim'' (criança, em tupi-guarani) –, ou seja, “jovem MC”.
Em seu trabalho mais recente, Xondaro ka’aguy reguá (Guerreiro da floresta), disponível nas plataformas digitais, ele retrata a realidade dos povos indígenas desde a invasão dos portugueses até o presente momento.
''A música fala sobre um guerreiro que nasceu das águas e veio para libertar os indígenas e lutar por eles. É uma maneira de dizer que surgiu um MC indígena. Mas também não falo só de mim. A todo momento está surgindo um indígena para falar sobre o seu povo. Já faz tempo que muitas pessoas querem ajudar o indígena, mas por que um indígena não pode ajudar seu próprio povo?'', questiona.
Cantada em guarani e com produção assinada por Fadel Dabien, a música tem sonoridade contemporânea, com referências ao reggaeton e à trap music, e traz samples de violino indígena, com um resultado alinhado com a estética futurista.
''Nela, tento mostrar que dá para colocar elementos indígenas em um rap. Não basta cantar em guarani, é importante mostrar elementos nativos'', comenta Kunumi.
''Antigamente, na floresta, havia muitas frutas para comer/ Mas os brancos vieram e destruíram tudo o que Deus criou'', canta ele, em um dos versos. ''Nativos e originários dessa terra, Brasil/ Desde mil e quinhentos vivemos em guerra/ Nosso povo foi oprimido e dizimado por não aceitar ser escravizado'', prossegue a letra.
Para ele, a solução para o aquecimento global – um dos temas abordados em Guerreiro da floresta – está nas mãos dos povos indígenas. ''A única saída que enxergo é a preservação das florestas, o que só vai acontecer se mais terras indígenas forem demarcadas. Para nós, o progresso está na floresta e a preservação dela é o verdadeiro enriquecimento'', afirma.
Dirigido por Bruno Silva e Gabe Maruyama, da Angry Films, o videoclipe da canção, com cenas gravadas na tribo Krukuto e na Avenida Paulista, em São Paulo, é um convite à reflexão. Para além da beleza estética das imagens, que trazem Kunumi MC como o guerreiro da floresta dotado de poderes sobrenaturais, o vídeo representa uma nova geração de indígenas que usam a educação, a arte e a tecnologia para defender e proteger suas terras.
CRÉDITO
'Hoje o indígena tem a liberdade de usar uma arte para lutar. Muita coisa indígena foi roubada e patenteada sem que recebêssemos o devido crédito. Então, a gente não vai virar branco porque estamos usando coisas que não são do índio. A internet, por exemplo, está a nosso serviço para lutar e eu uso a literatura, a música e o rap para defender o meu povo e divulgar as nossas causas'', comenta.
Além de Xondaro Ka’aguy Reguá (Guerreiro da floresta), Kunumi MC tem outros dois registros de estúdio: o EP My blood is red (2017) e o álbum Todo dia é dia de índio (2018). Como rapper, ele ainda colaborou com Criolo na música Demarcação já – Terra, ar, mar; e com Souto MC e Bia Ferreira na canção Festa e fartura. Em 2014, Kunumi publicou dois livros: Contos dos curumins guaranis (FTD) e Kunumi guarani (Panda Books).
''Acredito que minha música é muito importante para a sociedade entender que nós, os indígenas, estamos resistindo, mas também precisamos de ajuda. A nossa luta é a luta pela terra e pela floresta. Pela preservação da natureza'', afirma. ''E a minha literatura é uma forma de preservar as histórias do meu povo.''
Isolado na aldeia, ele mostra preocupação com o avanço da pandemia. Entretanto, afirma que esse é um obstáculo que se soma a outros. ''Hoje, o Brasil encara dois problemas: o coronavírus e o governo atual. Essa doença pode exterminar o nosso povo, mas sabemos que o governo também pode fazer isso, e de uma forma muito mais rápida.''
''Então, o que a gente tem feito é intensificar o uso de nossos remédios, que funcionam como forma de prevenção ao vírus. Eles possuem propriedades curativas, e a gente acredita muito neles. Quanto à luta, continuamos resistindo dentro da aldeia e divulgando a nossa causa na internet. Não temos tempo de descansar ou parar.''
Raoni acusa Bolsonaro de
se aproveitar da pandemia
O novo coronavírus, que atinge mortalmente o Brasil, não poupa os indígenas da Amazônia. Seu porta-voz emblemático, o cacique Raoni, de 90 anos, acusa o presidente Jair Bolsonaro de querer "se aproveitar" para eliminar seu povo.
De origem kayapó, Raoni menciona "a precariedade do atendimento da saúde" ao seu povo, cujo índice de mortalidade é duas vezes maior que o do restante da população. O cacique está confinado na aldeia de Metuktire, no Mato Grosso. "Só vou sair da aldeia quando normalizar tudo", disse, em entrevista por chamada de vídeo.
A ONG francesa Planète Amazone (Planeta Amazônia) promoveu uma campanha de arrecadação para assegurar o confinamento das comunidades indígenas. Mas 10 toneladas de alimentos básicos e produtos de higiene destinadas aos kayapós permaneceram bloqueadas durante três semanas, segundo a Planète Amazone, cujo presidente, Gert-Peter Bruch, denunciou "um excesso criminoso de burocracia". Com a falta de produtos, os indígenas precisam ir até as cidades se abastecer.
Da mesma forma, o fornecimento de medicamentos pelas ONGs a indígenas foi complicado por uma circular de Brasília, em 20 de maio. Segundo a Associação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), ao menos 211 indígenas morreram de COVID-19, num total de 2.178 contágios.
A pandemia impediu Raoni de ir a Brasília para defender outra causa essencial dos indígenas: a delimitação de suas terras. O cacique queria se reunir com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma instrução normativa editada recentemente pela Funai autoriza com efeito imediato o desmonte de 237 terras indígenas que não tinham sido ainda delimitadas por decreto presidencial. Trata-se de terras do tamanho do território de Portugal, que podem ser ocupadas e desmembradas.
"Não! Isso não pode acontecer! Nossa terra não pode ser ocupada pelos invasores", diz o cacique, referindo-se a fazendeiros, madeireiros e garimpeiros ilegais. "Ele (Bolsonaro), como presidente, tem que demarcar as terras que ainda não foram demarcadas para que meu povo possa ali viver e se sentir bem." (AFP)