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MÚSICA

Anastácia comanda o forró, apesar do coronavírus


Em seus recém-completados 80 anos, a cantora e compositora Anastácia jamais testemunhou um mês de junho sem os “arraiás” dedicados a Santo Antônio, São João e São Pedro, como ocorre agora por causa da COVID-19. No entanto, graças à Rainha do Forró, a trilha sonora das festas juninas domésticas terá algumas faixas inéditas. A artista pernambucana acaba de lançar a primeira parte de Anastácia 80, EP com cinco parcerias gravadas pouco antes de a pandemia chegar.



A produção é assinada por Zeca Baleiro, parceiro de Anastácia em Venha logo (com Chico César nos vocais e Joquinha Almeida na sanfona) e O sertão está chorando (cantada por Amelinha, com Adriano Magoo na sanfona). O duetos contam também com Roberta Miranda, Jorge de Altinho e Mariana Aydar.

“Tive o privilégio de ter vários sanfoneiros, um em cada música. Também estão lá Mestrinho, Cosme Oliveira e Genaro Tocador Cosme. São contribuições que me fortalecem muito, porque a mais fraquinha sou eu”, brinca Anastácia, autora de cerca de 800 músicas ao longo de 60 anos de carreira. Entre elas está o hit Eu só quero um xodó, parceria com Dominguinhos e sucesso na voz de Gilberto Gil.

ALCEU

Em breve, a segunda parte do projeto será lançada, também com convidados ilustres – Alceu Valença é um deles. As gravações ainda não ocorreram por causa da pandemia.



“Conversei com o Zeca Baleiro, decidimos lançar o que já tinha sido gravado para aproveitar meus 80 anos e mostrar alguma coisa nova para as pessoas. A vida é assim, não podemos parar, temos de estar sempre em busca de novos horizontes”, afirma Anastácia. Ela vem cumprindo o isolamento social em sua casa, em São Paulo. Otimista, garante: “Logo tudo vai passar.”

Cronista e intérprete “das coisas bonitas do Nordeste”, como gosta de dizer, as letras de Anastácia falam de saudade, partidas e chegadas. Boa parte dessa obra foi escrita com o eterno parceiro Dominguinhos, com quem ela foi casada nos anos 1960.

“A música é um universo infinito. Nesse novo disco, quis juntar pessoas que têm a ver com o meu trabalho e a minha região. Todos aceitaram, foi muito bom contar com Chico César, Amelinha – sempre fui apaixonada pela voz dela –, Hermeto Pascoal, Jorge de Altinho – que tem uma voz muito gostosa – e Roberta Miranda, que é paraibana. Só a Mariana Aydar não é nordestina”, diz. Essa cantora paulista, de 40 anos, é forrozeira assumida.



Pois é justamente a “forasteira” paulistana que divide com Anastácia a inédita Venceu a solidão. “Ela estava em meu acervo, não havia sido gravada, ninguém conhecia. Nem Dominguinhos a conheceu gravada. Quis cantar num estilo um pouco diferente do meu, esta canção traz a grandeza excepcional desse músico brasileiro de penetração mundial que tive o privilégio de ter como parceiro em mais de 200 composições”, afirma ela.

Com seus 80 anos, Anastácia exibe memória invejável. “Quando mexo na papelada e encontro uma letra, a vontade é de aproveitar que ainda lembro e gravar logo, porque a melodia ainda está na cabeça. Vai que daqui a pouco começo a chamar Jesus de Genésio, né?”, brinca.

Em seis décadas de dedicação à música, Anastácia ajudou a escrever a história do forró. Hoje, ela se alegra com a popularidade alcançada pelo gênero em todo o país. “Foi uma coisa demorada, uma longa jornada. O Nordeste sempre foi uma região muito esquecida, relegada ao segundo plano em tudo, inclusive na cultura musical”, observa. “Apesar dos 500 anos do descobrimento do país, até hoje ainda descobrem alguma coisa nova de lá..”



Anastácia cita o legado de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, “que deram o pontapé inicial”, e o trabalho do grupo Falamansa, criado nos anos 1990. “Fomos chegando, os jovens foram gostando, e a música nordestina faz parte de um contexto da MPB. Não é só uma coisa regional, você vê várias nuances, não é só aquela coisa do sertão, graças a Deus. Já sofremos muito preconceito, associavam o Nordeste sempre à seca, à miséria e à violência, mas hoje sabe-se que temos muitas coisas bonitas, especialmente o povo, muito amoroso”, celebra.

MULHERES

A cantora e compositora se orgulha de ter construído o espaço feminino no forró ao lado de outras pioneiras. “Viemos a Marinês (1935-2007), a única mulher que cantava forró nos anos 1950, e eu. Naquela época, falavam que ele era feito só para homem cantar porque tinha de ter muito fôlego. E eu dizia: Se mulher tem fôlego para parir, não vai ter para cantar forró? Aí esse mito foi se desfazendo, vieram a Cremilda e muitas outras. Hoje, temos uma infinidade de mulheres cantando”, comemora Anastácia.

O forró está “em evolução constante”, acredita a veterana. “Antigamente, a rapaziada mais jovem tinha vergonha de aprender a tocar sanfona, era coisa de velho, de matuto. Mas Dominguinhos mostrou aos quatro cantos do mundo a beleza do instrumento, quando bem tocado. Hoje, os jovens querem aprender – não aprender de qualquer jeito, mas estudar na faculdade. Moças e rapazes estão enveredando por esse caminho apaixonante, o que me deixa muito feliz, porque contribuí para isso, assim como Marinês, Gonzaga, Jackson. Tivemos um papel importante”, alegra-se.

Conformada com este junho atípico e confinada dentro de casa, ela diz que é hora de “dançar conforme a música”. E faz um apelo: “A regra é para todos, quanto mais a gente colaborar, mais rápido vai passar. Logo estaremos desfrutando de novo da nossa liberdade para poder correr atrás de um forró, dançar e cantar. Enquanto isso, vamos fazer a nossa fogueira improvisada, comer bolo de milho, paçoca, porque não vamos deixar passar o são-joão, mesmo em casa”, conclui.