Devidamente resguardado em casa, Jorge Mautner não para de produzir. Poemas inéditos do multiartista têm aparecido com frequência em seu perfil no Instagram. Além da criação prolífica, Mautner é conhecido pelos pensamentos progressistas desde que fundou, no fim dos anos 1950, o Partido do Kaos, levantando bandeiras como a defesa do meio ambiente e a diversidade sexual. Nesta entrevista por e-mail, Mautner – que completa 80 anos em 2021 – fala sobre o impacto da pandemia na humanidade, faz considerações sobre a situação atual dos artistas e afirma manter a fé no Brasil.
Como estão as coisas e como você tem passado por esse período de resguardo?
Estou na minha casa no Rio, sem sair. Lendo, escrevendo, falando com a minha filha, com a minha esposa e com meu amigo João Paulo Reys (que trabalha com Mautner).
Como está sua relação com a criação neste momento de quarentena?
Eu sempre produzi muito. Os fatos, para sempre e em todos os instantes, mesmo lá atrás, são muito fortes, são muito importantes. Sempre tive um pensamento fundamentado na história. Tudo é história. Tanto as estórias como a História, mas é tudo uma história só. Tudo que é da história me abala. Toda semana, com a ajuda do João Paulo pelo telefone, tenho publicado novos inéditos poemas em meu Instagram.
Pensa em fazer live?
Olha, fazer lives não se coordena com a minha situação atual. Mas recomendo que consultem o meu portal Panfletos da Nova Era, que é uma obra-prima feita pelo João Paulo e pela Maria Borba. Lá estão infinitos shows gravados, entrevistas que eu dei recomendações de leitura. É interessantíssimo.
Os shows estão parados neste momento. As plataformas digitais revolucionaram o consumo de música e as lives são um caminho para que cantores e compositores apareçam para o público, mas o dinheiro para os profissionais das artes em geral está escasso. Como resolver essa questão?
Eu recebo direitos autorais e tenho a minha filha Amora Mautner (diretora da TV Globo) que financia o apartamento onde moro, a comida que eu como. É isso. Infelizmente, minha situação é um privilégio para poucos. Penso que nesse momento extraordinário deveriam haver subsídios públicos urgentes para quem está precisando. A arte é fundamental para a vida do ser humano. O Brasil se fez com os cantos e os atabaques dos negros trazidos como escravos. Getúlio Vargas governou o Brasil através da Rádio Nacional. Tudo aqui é música, é poesia. O brasileiro e a brasileira vivem em plena imaginação de criatividade permanente.
Seu amigo Gilberto Gil já disse ser otimismo demais que a pandemia tenha força para refundar a essência das pessoas. Você concorda?
Acho que toda essa experiência altamente traumática de sofrimento e dor, com a chegada do vírus contrastando com as conquistas inacreditáveis da ciência, incentivará a imaginação de todos. É preciso falar sobre essas coisas de qualquer maneira para que elas mudem para sempre. O filósofo Carvaka disse que apenas duas coisas importam: boa digestão e nenhuma consciência. Nos Upanishads (escrituras consideradas instruções religiosas pelo hinduísmo), está escrito: tudo é sofrimento. E logo abaixo: gostar de tudo que acontece. Por fim, as últimas palavras do Buda: embora seja inútil, não negligenciai esforços.
Há quem afirme que a pandemia pode servir de pretexto para o fim da democracia em alguns países. Você vê essa perspectiva como verossímil?
Vejo sempre todas as possíveis perspectivas de tudo. O acaso, as intenções, o instante do momento em que tudo se dá forjam as saídas mais surpreendentes. Mas acho que uma situação em que, num mundo de 8 bilhões de pessoas, a renda é concentrada nas mãos de 1% terá que se acabar. Isso se dará quando todos tiverem condições de trabalho digno, de tempo para o devaneio (que talvez seja o mais importante porque é o da criatividade e do amor). A ciência está do nosso lado e a maioria dos povos do mundo também está do nosso lado, no sentido de estar do lado dessa ideia.
Quais seus planos para 2020?
Os planos são os que estou concretizando. Escrever, cantar, falar, irradiar a notícia sempre nova da esperança. A esperança não é a última que morre, ela nunca morre. E como disse São Paulo, mesmo quando não houver mais nem fé, nem esperança, o amor continuará a resplandecer no universo. “A religião é o coração de um mundo sem coração”, Karl Marx.