Mendrisio é uma pequena cidade no extremo Sul da Suíça. Distante 75 quilômetros de Milão, fica a apenas 7 quilômetros da fronteira italiana. Nos últimos meses, o violinista britânico Anthony Flint, ex-spalla da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, tem convivido com o lockdown na cidade onde vive.
A abertura do comércio naquela região deverá ter início, de forma tímida, na próxima segunda-feira (11). Restaurantes e cafeterias voltarão a funcionar, mas com apenas 30% de sua capacidade. Para Flint, o período de confinamento tem sido fora do comum por mais de uma razão.
“Terminei há poucas semanas um tratamento de radioterapia. Estou muito disposto, e se tivesse que fazer dois, três concertos neste fim de semana não haveria problema. Isso pode soar meio maluco, mas, para mim, foi tudo bem, já que, por causa do tratamento, pude sair de casa, ao contrário dos outros, que ficavam presos”, ele contou à reportagem em conversa telefônica ontem, já se sentindo totalmente recuperado.
O confinamento também fez com que o experiente instrumentista redescobrisse outros aspectos da música. “Fui forçado a tocar para mim por um longo tempo, então redescobri compositores como Bach e Telemann ao violino, sem nenhum outro acompanhamento. Não faria isso (em uma situação normal)”, diz.
Poucos dias atrás, Flint comenta, executou uma sonata de Prokofiev somente com seu violino. Na ‘plateia’, três pessoas via Facetime. “Como muitos amigos no Brasil estão isolados, tenho mantido contato”, afirma o violinista, que já fez a experiência de transmitir um recital via Facetime para pessoas amigas meia dúzia de vezes.
Devido à diferença de fuso horário (a Suíça está cinco horas à frente do Brasil) , ele costuma ir para seu estúdio por volta das 23h. Fica até o início da madrugada executando as obras. Não é o ideal, ele diz, mas o que é possível por ora.
“Quando são realizadas gravações de concertos, os engenheiros conseguem captar um bom som, seja de uma orquestra ou de uma formação menor, como um trio. Mas quando você toca pelo WhatsApp, Facetime, perde-se muito, não há o toque pessoal dos dedos, das mãos e do próprio violino”, observa.
AULAS
“Para ser honesto, sei que muito se tem falado de pessoas dando aulas on-line, fazendo masterclasses, mas eu não gosto. Amo o conceito de estar num palco, seja um grande, como o da Sala Minas Gerais, ou um pequeno. Gosto de concertos ao vivo, seja para 60 ou 2 mil pessoas. Acho que por causa da minha idade, por ter feito isso a vida inteira, preciso do contato pessoal”, afirma.
Como neste momento não é possível manter o contato social, Flint tem praticado muito em casa. Está preparando seis programas de recitais. Em decorrência da pandemia do novo coronavírus, ele teve que cancelar concertos na França e na Inglaterra. De olho no futuro, ainda que não se saiba quando, tem preparado um repertório ‘pouco usual’, de violino e órgão, que pretende apresentar com um organista italiano, em uma série de igrejas do Reino Unido.
E o Brasil, como fica? A última apresentação de Flint em Belo Horizonte foi em dezembro passado, quando executou, como convidado da Filarmônica, Sheherazade (1888), de Rimsky-Kosakov. Voltaria em março passado, para um concerto de câmara com músicos que se tornaram seus amigos durante os nove anos em que viveu na capital mineira (ele deixou a Filarmônica em junho de 2019). Mas teve que adiar os planos.
“Estou com muitas ideias. Quero ligar para o maestro Mechetti (diretor artístico da Filarmônica) e para a Celina (Szrvinsk, que organiza a temporada de concertos do Minas Tênis Clube) para tentar fazer concertos beneficentes. Pode ser em benefício de um hospital. Acho que precisaremos de muita ajuda para restaurar a música após este desastre mundial. Ando preocupado com o futuro da cultura, orquestras vão ter que lutar (para se manter na ativa) depois do coronavírus. Quero dar uma pequena ajuda.”
DIA DAS MÃES
No domingo (10), Dia das Mães, a Filarmônica vai mandar para as redes sociais vídeo em que interpreta a Valsa da Suíte Vila Rica, do compositor Camargo Guarnieri. Cada um dos sessenta instrumentistas gravou sua participação de casa, e as imagens foram editadas. O maestro Fabio Mechetti explica que essa é uma forma de homenagear as mães, já que a orquestra não pode realizar concertos presenciais. O vídeo estará disponível nas páginas do grupo no YouTube, Instagram e Facebook, além do site www.filarmonica.art.br.
A música do Brasil pela Filarmônica
Pianista brasileira radicada em Paris, Sonia Rubinsky foi a estrela de quatro concertos que a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais realizou em maio do ano passado em torno do repertório do compositor paulista José Antônio de Almeida Prado (1943-2010). Terminada a curta temporada, ela, sob a regência de Fabio Mechetti, gravou três obras do autor, ao lado da formação mineira.
Lançado nesta semana, o CD Almeida Prado – Obras para piano e orquestra é o segundo disco que a Filarmônica registra na série A música do Brasil, que integra o projeto Brasil em Concerto, parceria do Itamaraty com o selo internacional Naxos.
O trabalho reúne as obras Aurora (1975), Concerto nº 1 para piano (1982-1983) e Concerto Fribourgeois (1985). A capa do CD traz uma imagem de Aparelho cinecromático SF-4, de Abraham Palatnik, papa da arte cinética brasileira.
Rubinsky, que em 2008 executou em Belo Horizonte Aurora em concerto, numa apresentação que contou com a presença do próprio Almeida Prado, lamentou a ausência do compositor. “A única coisa que sinto é que ele não está aqui com a gente, não esteve presente nas gravações, pois estaria muito feliz com a seriedade e empenho que trouxemos para o trabalho”, disse a pianista, em bate-papo virtual com Mechetti feito para divulgar o trabalho.
A pianista tinha uma relação próxima com o compositor, que lhe dedicou algumas obras, entre elas Cartas celestes XII, Três croquis de Israel e 20 flashes de Jerusalém. Almeida Prado, também um pianista com grande capacidade de improvisação, foi um compositor bastante pessoal e prolífico – criou três centenas de obras.
ARROUBOS
Para Rubinsky, é algo complicado colocar diferentes concertos de um mesmo compositor em um disco só. “Essas obras são muito distintas”, comentou. De acordo com a pianista, o Concerto nº 1 é uma peça de “extremo virtuosismo” para o solista e a orquestra. “Ele é muito bem escrito e estruturado, mas tem muitas variações. São arroubos de sonoridade enormes, parece música aleatória, mas não é.”
Aurora, a mais antiga das três obras, é da fase em que o compositor estava muito ligado à natureza. “É uma peça relativamente curta, com efeitos sonoros extremos e lugares de muita atmosfera. Na terceira parte, há uma série de episódios que têm pássaros cantando. Ele consegue um efeito maravilhoso. Sempre penso no barulho do mundo, aquele antes do nascer do sol, quando todo mundo está dormindo. Mas o mundo tem um barulho, e Almeida Prado coloca isso na peça.”
Já a terceira composição do álbum, Fribourgeois, é de forte influência barroca. “É talvez a mais formal das três, inclusive com uma citação de uma fuga de Bach”, observa Rubinsky.
Antes de Almeida Prado, a Filarmônica gravou um álbum dedicado a Alberto Nepomuceno na série A música do Brasil. Para os próximos anos a orquetra mineira prevê registros de peças dos compositores Lorenzo Fernandez, Carlos Gomes e Henrique Oswald. (MP)
ALMEIDA PRADO – OBRAS PARA PIANO E ORQUESTRA
Álbum da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais com regência de Fabio Mechetti e a pianista Sonia Rubinsky. Disponível nas plataformas digitais. O CD está à venda no site www.lojaclassicos.com.br por R$ 39. No canal da Filarmônica no YouTube (@filarmonicamg) está disponível um documentário sobre os concertos que resultaram no disco.