Tive muitos ídolos na vida, nenhum do tamanho do Aldir Blanc. Aldir era grande
porque era muitos: o ídolo, o inacreditável letrista, o Garrincha da MPB que nos fazia
rir, chorar e chorar de rir com suas crônicas musicadas por João Bosco.
Aldir era a alma do subúrbio carioca, o olhar único sobre a vida na Zona Norte, o Proust
de Vila Isabel.
Aldir era o homem que abandonou a medicina para se dedicar à a poesia da vida, fosse
lida, cantada, falada, escrita, conversada, versada e improvisada.
Aldir era o parceiro de bebida de todo o bêbado, embora não bebesse há muitos anos.
Nunca fui a um botequim com ele, mas jamais deixei de brindar os melhores
sentimentos de um fã quando chega à segunda casa de um ídolo. Entrar num botequim,
na minha cabeça de adolescente, era sair de uma música ou crônica de Aldir para a vida
real.
O Aldir, aliás, quando nasceu foi surpreendido por um anjo meio torto português que
lhe disse “Bai Vlanc, ser Basco na Bida”. Era um vascaíno intransigente e ranheta.
Sabia tudo do time.
Aldir era de uma geração que ganhou o nome de MAU, Movimento Artístico
Universitário, uma galera que se reunia em torno da música na Rua Jaceguaí, na Tijuca,
todos os sábados, na casa da família Portocarrero; Jovens cheios de sonhos e sambas
muitos deles cantados por gente como Elis já naquela época. Eram “nativos” daquele
lugar, entre outros, Gonzaguinha e Ivan Lins.
Quando o conheci pessoalmente, levado à casa dele, na esquina da Muda com a Usina
por João Máximo, para entrevistá-lo para o Jornal do Brasil, em meados dos anos 1980,
não tive pudor em revelar minha admiração.
“Tinha o sonho de conhecer pessoalmente duas pessoas: você e o Samarone.”
“Tu tá me sacaneando...”
Essa resposta, lembrada por ele desde então quando nos encontrávamos ou quando um
portador levava um abraço meu pra ele e vice-versa, me faz pensar até hoje.
Nunca soube e nem teria a coragem de perguntar, se ele se sentiu sacaneado por ser
vascaíno, por ser comparado a um jogador de clube, ídolo, mas muito distante da
constelação do futebol brasileiro ou sei lá por que outro motivo. Me pego rindo sempre
que lembro dessa nossa primeira troca de palavras, cara a cara. Já o havia entrevistado
por telefone algumas vezes, mas estar diante da figura do Aldir era um presente da vida.
Quando o conheci já tinha lido todos os seus livros de crônicas, cada uma mais
engraçada do que a outra, editados pela Codecri, da turma do Pasquim, onde desfilavam
personagens reais: o tio Waldir Iapetec, o avô Aguiar, de longe a grande figura da vida
de Aldir, o pai Ceceu Rico e outras figuras absolutamente humanas, movidas pela sem-
vergonhice em seu sentido mais amplo: não se ter a vergonha de ser o que se é. Sua obra tinha muito da sem-vergonhice da vida, a emoção verdadeira, os sentimentos mais
surpreendentes que o homem pode expressar.
Sou grato por ter Aldir como ídolo, inspiração, por ler suas histórias, algumas contadas
por ele mesmo, ouvir suas músicas, por ter conhecido sua casa, a mulher, as filhas e
vivido alguns momentos com ele que guardo com todo o cuidado no cantinho do afeto.
Uma noite inacreditável
Vivi com o meu colega e amigo Claudio Henrique uma noite inacreditável em torno do
Aldir. Início dos anos 1980, o samba andava em baixa e os compositores se reuniam na
casa do Moacir Luz, no primeiro andar do prédio onde morava o Aldir. Como as
gravadoras não queriam saber de samba, eles passavam a noite mostrando uns para os
outros o que estavam compondo. Naquela noite, que virou reportagem da revista de
Domingo do JB, estavam o Betinho, Paulo Cesar Pinheiro, Fátima Guedes, o Magro do
MPB-4, Sílvio da Silva Filho, Aldir, Mary, Guinga e uma das filhas, Dudu Falcão e
mais gente. O violão passava de mão em mão e isso durou até de manhã. Betinho disse
para mim e para o Claudio: “Essas reuniões aqui são os melhores momentos musicais
da minha vida.”
Foi lá, numa dessas reuniões, que nasceu Saudades da Guanabara, escrita a seis mãos
por Aldir, Paulo Cesar Pinheiro e Moacir Luz. Eu era editor do caderno Cidade do JB.
Aldir me ligou e contou:
“Nêgo, fiz uma música que é um passeio pela nossa saudade do Rio e um lamento à
desesperança desses tempos de degradação e violência. Vou te mandar pra ouvir e acho
que pode render uma matéria.”
O Rio era uma de nossas paixões em comum. Ouvi a fita cassete e chorei e ainda choro
com o refrão:
Brasil, tira as flechas do peito do meu padroeiro
Que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar
Na mesma época convidei-o a escrever uma coluna no jornal. Ele recebia um desenho
do Lan, o grande caricaturista, e fazia o texto. Eram geniais. Lan e o Lan se adoravam.
Aldir brincava. “Sou letrista de caricatura”!
Que pena Aldir ter partido assim. Não merecia sofrer no final, nem nunca. Foi-se um
olhar único da vida, personagem de si mesmo. Imagino a dor de tanta gente, tantos eram
o Aldir. Ele era ligado demais à família, tinha um amor incontrolável pela mulher, um
ciúme de maluco das filhas e um tremendo orgulho da terceira geração, da neta que
deve estar fazendo residência médica. Era preocupado com os parentes, com os amigos.
Quando soube que eu estava com hepatite também lá pelos anos 1980, me ligava toda a
semana para saber a quantas estavam minhas transaminases e bilirrubinas. E dizia: “Fica
tranquilo, daqui a um ano a gente vai tomar uma cerveja!”
Aldir amava, sobretudo os livros. Moacyr Luz me contou, um dia, de uma viagem que
fizeram para a casa de campo de um amigo num feriado. Aldir já estava recluso, quase
não saía do quarto. Todos ficaram muito felizes em ele topar passar uns dias fora. E lá
foram. Aldir levou três malas e todo mundo estranhou. Chegou na casa do amigo na
Serra, entrou no quarto e desfez a curiosidade. Eram malas de livros. Se trancou ficou
lendo e só saiu do quarto na hora de embora. Moacyr comentou:
“Como lia aquele filho da puta!”
Aldir era o olhar desconcertantemente lúcido sobre a tragédia da vida no sentido grego
da palavra. Não saberia hierarquizar os grandes de todos os tempos, mas no meu time
ele joga com a 10.
O carioca Bruno Thys é jornalista e um dos sócios da editora Máquina de Livros. Trabalhou no Jornal do Brasil, revista Veja e grupo Globo. O texto acima foi publicado nas redes sociais e reproduzido com autorização do autor.
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