Compositor Aldir Blanc morre aos 73 anos de COVID-19

Aldir Blanc deixa legado monumental para a MPB, calculado em cerca de 600 letras. Com o mineiro João Bosco, criou as obras-primas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Dois pra lá, dois pra cá'

Ângela Faria 04/05/2020 08:38
ALAOR FILHO/ESTADÃO CONTEÚDO - 29/09/2006
(foto: ALAOR FILHO/ESTADÃO CONTEÚDO - 29/09/2006 )

"Chora nossa pátria mãe gentil/ choram Marias e Clarices no solo do Brasil" nesta segunda-feira (4). Morreu, aos 73 anos, no Rio de Janeiro, o compositor Aldir Blanc, vítima de uma infecção generalizada provocada pela COVID-19, doença diagnosticada no artista em 22 de abril. O óbito foi confirmado pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, onde o músico estava internado desde 15 de abril. 

Antes de dar entrada no HUPE, Aldir permeneceu cinco dias no Hospital Municipal Miguel Couto, no Leblon, Zona Sul da capital carioca. Chegou a ser intubado em uma sala da unidade, por falta de vagas em CTI. No dia 20, após mobilização da família pela internet, o compositor foi finalmente transferido para o leito de terapia intensiva do hospital Pedro Ernesto. 

Ainda não há informações sobre os ritos fúnebres, que devem ser rápidos, reservados e sem aglomerações, como recomendam protocolos fixados pelas autoridades sanitárias em função da pandemia de coronavírus



Certa vez, Aldir Blanc contou numa entrevista que seu maior orgulho era ser compositor popular, ouvir alguém batucando Kid Cavaquinho dentro do ônibus, a seu lado. Missão plenamente cumprida. Esse carioca da gema – nascido no Estácio, criado em Vila Isabel e tijucano militante – nunca saiu da boca do povo. Roda de samba? Dá-lhe. De frente pro crime, parceria dele com o mineiro João Bosco. Dor de cotovelo? Atire a primeira pedra quem não sofreu por Dois pra lá, dois pra cá. Serenata? Amigo é pra essas coisas, de Aldir e Silvio da Silva Jr., é tiro certo. Política? O bêbado e a equilibrista, obra-prima do carioca e do mineiro, foi o réquiem da ditadura militar. Brasil profundo? Dá-lhe Rancho da goiabada.

Bardo da Tijuca, Aldir viveu 73 anos – desde os 16, metido com a música. Aprendeu bateria, trouxe dos anos de infância em terreiros de candomblé o ritmo e o compasso de seus versos. Construiu obra monumental – cronista urbano, historiador do Brasil e psiquiatra do povão. Senão vejamos: no samba Mestre-sala dos mares, celebra a grandeza do negro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, que mobilizou marinheiros contra maus-tratos infligidos pela Marinha do Brasil. Em Gol anulado, revela o inferno conjugal verde-amarelo (“Quando você gritou Mengo, no segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar ao cinto/ e bati até cansar”). Em Resposta ao tempo – parceria com Cristovão Bastos, tema da minissérie Hilda Furacão –, é tão porta-voz da alma feminina quanto Chico Buarque.



Foram centenas de letras. Cerca de 600. Só a biografia Aldir Blanc: Resposta ao tempo, lançada em 2013 pelo jornalista Luiz Fernando Vianna, contabilizou 450 composições e cerca de 50 parceiros – João Bosco (mais de 100 letras), Guinga, Moacyr Luz, Cristovão Bastos e Maurício Tapajós foram os mais frequentes. Mas a lista é imensa: Carlos Lyra, Djavan, Sueli Costa, Edu Lobo, Ivan Lins e Paulinho da Viola, entre muitos outros.

O Bardo da Tijuca traçava todas: samba, choro, valsa, baião, bolero, fox, samba-canção. Dorival Caymmi cravou: “Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives do Palavreado. Estamos falando de poesia verdadeira.”

Essa ourivesaria sempre ofereceu biscoito fino para as massas. “Entre o escancaro e o contido/ eu te pedi sustenido/ e você riu bemol”, diz o verso de Catavento e girassol, parceria de Aldir com Guinga. Em várias entrevistas, contou que suas letras, sílaba por sílaba, eram colocadas sobre as notas musicais. “Botar melodia nas letras do Aldir que são como crônicas não é coisa fácil. Às vezes, temos a sorte de ele ligar e declamar pelo telefone, quase cantando. Já dá um caminho”, revelou o cavaquinista Jayme Vignoli ao jornal O Globo. No início do ano, ele, o grupo Água de Moringa e a cantora Mariana Baltar lançaram o disco Os Arcos – Paixão e morte, dedicado à obra de João Bosco e Aldir.

Ouro Preto

A mítica parceria João Bosco-Aldir Blanc surgiu em 1971. Amigo de ambos, Pedro Lourenço Gomes revelou ao carioca ter ficado impressionado com um estudante de engenharia que ouvira tocar violão, em Ouro Preto. Apresentou o futuro engenheiro ao futuro médico. João não seguiu a carreira. Aldir foi psiquiatra até 1974. Em 1972, um compacto produzido pelo jornal alternativo O Pasquim marcou a estreia fonográfica da dupla, com Agnus sei. No lado A estava Águas de março, obra-prima então inédita de Tom Jobim.

Desde 1963, Aldir fazia música. Foi baterista, participou de festivais, teve canções gravadas por Taiguara e Clara Nunes, militou no Movimento Artístico Universitário (MAU) ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e Cesar Costa Filho.

Coube a Elis Regina chamar a atenção do Brasil para a dupla João Bosco-Aldir Blanc. A cantora estourou com Bala com bala, gravou Agnus sei. Em 1973, o LP João Bosco reuniu 12 parcerias dos dois, que enfrentaram inúmeros problemas com manda-chuvas de gravadoras. Em 1974, Elis gravou um álbum batizado com seu nome, que se tornaria clássico da MPB. Trazia Mestre-sala dos mares, Dois pra lá, dois pra cá e Caça à raposa, obras-primas de João e Aldir.

Em 1975, com o álbum Caça à raposa, João Bosco e Aldir conquistaram de vez seu espaço na MPB. Falavam de um país oprimido pela ditadura, dos excluídos e de amores suburbanos (por vezes, politicamente incorretos). A censura não deu trégua, mas aquelas canções foram trilha sonora do Brasil e sua gente – De frente pro crime, O ronco da cuíca, O rancho da goiabada, O cavaleiro e os moinhos, Bala com bala, O bêbado e a equilibrista, Miss Sueter, Bodas de prata, Violeta de Belford Roxo, Corsário, Incompatibilidade de gênios, Latin lover são apenas algumas delas. “Minha pedra é ametista”, cantava João em Bijuterias, tema da novela O astro. “Toca de tatu, linguiça e paio e boi zebu/ Rabada com angu, rabo de saia”, esbaldava-se o país inteiro em Linha de passe.

Nos anos 1980, a dupla se desfez. Incompatibilidade de gênios? O mineiro e o carioca alegaram desgaste da relação. Ao Correio Braziliense, classificou como “mito urbano” a suposta briga: “Estivemos cada vez mais distantes um do outro, o que pode acontecer em qualquer parceria. Cada um foi tratar da própria vida”.




Foi o que Aldir fez. Nunca foi cantor, dependia de seu ofício, sobrevivia de direitos autorais. Batalhou anos a fio em entidades de defesa do compositor. Em 1996, Catavento e girassol, disco de Leila Pinheiro dedicado exclusivamente à parceria de Aldir e Guinga, vendeu 100 mil cópias. Marco da MPB.

Em 2001, João e Aldir se reaproximaram, durante a gravação de um songbook do mineiro. Em 2005, fizeram Toma lá dá cá, tema de abertura do programa humorístico da Globo. Quatro anos depois, quatro parcerias dos dois brilharam em Não vou pro céu, mas já não vivo no chão, álbum de João.

Em 2017, no disco Mano que zuera, o mineiro gravou bela inédita da dupla, Duro na queda, e incluiu a releitura de João do Pulo, trinta e um anos depois do lançamento da tocante homenagem ao campeão olímpico, que morreu pobre e deprimido depois dos anos de glória. Neste 2020, Abricó-de-macaco, o novo disco de João, retoma Nação, Linha de passe e Profissionalismo é isso aí, clássicos da dupla.

A obra do carioca também está em discos lançados por ele: Rio, ruas e risos (com Maurício Tapajós, 1984), Aldir Blanc – 50 anos (1996) e Vida noturna (2005).

Noel

Discípulo de Noel Rosa, morreu no mesmo dia de seu mestre. Recluso na Tijuca (mas fundador de blocos de carnaval e batizou o Simpatia É Quase Amor), cultivou respeitável biblioteca, que chegou a 15 mil volumes, Aldir viveu os últimos anos dedicado à segunda mulher, Mary Sá Freire, às filhas e aos netos. Mary também contraiu o coronavírus, foi hospitalizada e recebeu alta no final de abril. Bom copo, o compositor parou de beber em 2010, devido ao diabetes. As tragédias de seus sambas não eram tão fictícias assim. A mãe teve depressão a vida inteira; ele foi criado pelos avós; perdeu filhas gêmeas prematuras, do casamento com Ana Lucia – trocou de vez a medicina pela música ao não poder salvar as meninas.

Expert em extrair lirismo da brutalidade, foi um “branco azedo” aluno de colégio de padres (palavras dele), alvo do bullying de motoristas de caminhão, policiais e cascas-grossas das ruas do Estácio, com quem era obrigado a conviver. Dizia conhecer o racismo de perto por causa daqueles tempos de menino.

Porém, gibis, Carlos Drummond de Andrade, Norman Mailer, Anthony Burgess, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Antonio Callado e Carlos Heitor Cony fizeram a cabeça do jovem branquelo. “Não sei se Aldir levou o samba para a literatura ou a literatura para o samba”, comentou João Bosco, certa vez.

Homem ligado à esquerda, ao completar 70 anos declarou ao jornal O Globo se considerar “um pessimista esperançoso”. Comentando que o chamavam de petralha, disparou: “Vejo o Brasil muito pressionado por uma nova direita exuberante com dinheiro, verdadeiros canalhas mandando, fazendo o que querem. Como Bolsonaro, Réunam (sic), Aócio (sic), que foi citado 30 vezes mas nunca foi levado em blablablá coercitivo. As conquistas populares foram perdidas, não sem razão. Houve um enorme vacilo do PT. Um partido que não consegue nomear, em sucessivas gestões, um único tesoureiro honesto tem realmente que repensar tudo da política que fez.”

Articulista de jornais e revistas, Aldir lançou livros de crônicas e poemas – Rua dos Artistas e arredores (1978), Porta de tinturaria (1981), Brasil passado a sujo (1993), Vila Isabel – Inventário de infância (1996), Um cara bacana na 19ª (1996) e a coletânea Rua dos Artistas e transversais (2006).

Dois filmes abordam vida e obra dele: Aldir Blanc, dois pra lá dois pra cá (2004), de Alexandre Ribeiro de Carvalho, André Sampaio e José Ribeiro de Morais, e o documentário de Hugo Sukman e Marcus Fernando previsto para sair este ano, parceria com o Canal Brasil.

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