'Faço música para confrontar', avisa Djonga, ao lançar o seu 4º disco

Em 'Histórias da minha área', rapper denuncia o racismo e a violência enfrentadas pelas periferias do Brasil. E também celebra vitórias de jovens negros como ele e o craque Bruno Henrique, do Flamengo

Pedro Galvão 17/03/2020 08:12
Daniel Assis /Divulgação
Djonga lançou seu novo trabalho na sexta-feira (13) (foto: Daniel Assis /Divulgação)
Lançado sexta-feira, 13, às 18h, Histórias da minha área, quarto álbum do rapper Djonga, desbancou o novo coronavírus e se tornou o assunto mais comentado do Brasil no Twitter naquele momento. Outra prova da grande fase do artista belo-horizontino, que figurou entre os primeiros em várias listas de melhores de 2019 com disco anterior, o premiado Ladrão. Com toda a agenda de shows cancelada por tempo indeterminado devido ao Convid-19, ele diz que não será “mais prejudicado que ninguém” pela pandemia. E celebra a viralização positiva das novas músicas, em que suas raízes surgem marcadas com ainda mais força. Até as 18h de segunda-feira, as 10 faixas somavam 11 milhões de views no YouTube.

“Precisamos ver como será o avanço, se vai mesmo acontecer uma epidemia cabulosa, ou se vai ser uma coisa mais passageira. A decisão de não ter shows me parece bem prudente. Quando tudo estiver normal, volto no ritmo. Por enquanto, o pessoal continua ouvindo o disco”, diz o rapper. Se as autoridades recomendam à população que fique em casa, Djonga se volta musicalmente para os arredores de seu próprio lar. Ao falar de sua própria área, ele quer contar sobre a realidade de tantas outras “quebradas” do Brasil.

“Histórias da minha área vem do processo de querer simplesmente lembrar os amigos e a vivência que tive para chegar onde cheguei. Em Ladrão, falei da coisa mais família, mais da raiz, no sentido de ancestralidade. Neste disco, é a lembrança de como os amigos, a rua, as coisas negativas e positivas me fizeram chegar até aqui. O tema central é debater a minha área de forma que as pessoas se identifiquem, pois é a história de muitas outras áreas do Brasil também”, explica Djonga, que cresceu entre os bairros Santa Efigênia e Novo São Lucas, na Região Leste de BH, onde mora. Foi lá que ele comemorou o lançamento do disco, na sexta-feira à noitinha, com a vizinhança e festa na rua.

FUNK 

De acordo com o rapper, as 10 faixas do álbum, disponíveis exclusivamente nas plataformas digitais, “são mais diretas”, em comparação a outros trabalhos. O dono do refrão “fogo nos racista” (sic), do hit Olho de tigre (2017), comenta que desta vez as histórias de sua área “não estão diluídas em outros temas, inclusive na questão estética, com musicalidade mais voltada para o funk, a grande música que a galera ouve nas periferias.”

Na abertura do álbum, O cara de óculos, com participação da cantora e atriz Bia Nogueira, ele fala sobre a passagem da infância para a adolescência. Os versos escancaram a desigualdade social e a violência enfrentadas por ele e os amigos ao perseguir sonhos comuns aos jovens da periferia. “Faço o som que te tira a venda, deixa os boy fazer o som que vende”, avisa a letra.

Djonga faz jus a esse recado nas faixas a seguir. Em algumas, lembra momentos duros, como em Não sei rezar, dedicada “aos amigos que partiram”, vítimas da violência. Porém, fica claro que as adversidades não impediram a realização pessoal de jovens como ele. É o caso de Gelo, gravada com o mineiro Fabrício FBC e o carioca NGC Borges. Em Hoje não, as rimas lembram as violentas contradições impostas pelo racismo estrutural no Brasil, mas também fala de conquistas, como o carro importado e o fato de o rapper ser admirado por muita gente.

BRUNO HENRIQUE

O pai de Jorge, de 3 anos, e Iolanda, de 4 meses, fala de família e do amor, no contexto das histórias de sua área. Em Oto patamá, o rapper homenageia o jogador Bruno Henrique, do Flamengo, tanto no título quanto na letra: “Seja protagonista da sua história/ Pega a folha e muda o roteiro/ Minha gente cruzou o mar à força com mão branca/ Cruzei voando com a força da minha palavra/ Nós só é bom no campo igual Bruno Henrique/ Porque lembra dos tempos na várzea”.

“Não conheço o Bruno pessoalmente, conheço pessoas que o conhecem, mas ele é um símbolo. É um cara que, assim como eu, é de BH e faz sucesso no Brasil e no mundo, mas não se esquece de onde veio. Essa é a homenagem por ser uma referência, uma grande mensagem sobre um cara preto de BH, vitorioso, que tá sempre no lugar de onde veio”, explica o atleticano Djonga sobre o craque, de 29 anos, que despontou no futebol amador no Bairro Concórdia, na Região Nordeste da capital, e hoje está na Seleção Brasileira. Em 2019, uma entrevista do atacante ficou famosa pela forma como ele disse que o Flamengo estava em “outro patamar” em relação aos demais times brasileiros.

De acordo com Djonga, suas letras vêm “dar voz a quem precisa ser ouvido” neste Brasil de tensões sociais tão acirradas. “Vejo o discurso quase sempre feito por intelectuais, o pessoal debatendo um tema que não viveu. Entendem porque estudam sobre, mas não viveram isso diretamente, como eu vivi de alguma forma. Esse disco vem para dar voz, colocar essa galera no debate, para mostrar que nós também podemos falar. Cadê a nossa perspectiva? São as histórias da nossa área que importam, as que realmente importam para acabar com esses problemas”, afirma.

Com popularidade que transcende fãs de rap ou apenas um espectro socioeconômico, as fortes mensagens de Djonga chegam também aos ouvidos de classes mais favorecidas, que jamais sofreram o racismo na pele, por exemplo. “O importante é eles saberem. Não faço música para agradar, faço para confrontar. Se estão ouvindo e entendendo, que bom. Que assim seja, que entendam de forma que parem de prejudicar a gente. Às vezes, não fazendo nada já ajuda muito”, argumenta o rapper. “Durante uma época, eu pensava sobre essa playboyzada ouvindo, e pá... Mas vejo que é interessante, porque se estou criticando os caras, eles têm que ouvir. Tomara que mudem.”

A forte conexão com vários públicos transformou Djonga em presença constante em grandes festivais de programação mais eclética, como o Planeta Brasil, em Belo Horizonte, e o Universo Paralello, na praia paradisíaca de Pratigi, Norte da Bahia, nos quais dividiu o line-up com Caetano Veloso, por exemplo. Os preços dos ingressos costumam ter três dígitos. O mineiro diz que não diferencia plateias. “A mensagem é a mesma para 10 mil ou 1 mil. A energia é a mesma”, garante. Em 21 de abril do ano passado, ele fez show com ingressos a R$ 10, no KM de Vantagens Hall, para lançar Ladrão em BH.

Djonga diz que a relação com a vizinhança – agora tema de seu disco – não mudou. “A única diferença é que vejo que o pessoal sente orgulho de saber o que aconteceu comigo na música. Fora isso, é a mesma coisa... Cada um dá o mesmo tanto para a cerveja. Quem não dá, a gente xinga, e é isso aí. Às vezes, dou uma força. Quando posso, tento levar a galera para trabalhar, trocar uma ideia, ver um show. É a mesma coisa de sempre: somos amigos e nunca vou esquecer os cara”, diz o morador “da Leste.”

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