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Novo álbum de Arnaldo Antunes vai de João Gilberto a Bolsonaro

 
Canção, Arnaldo Antunes sempre fez. Ora com escárnio, ora com humor, doçura, ironia, paixão. O formato e a sonoridade mudam; o estilo, permanece. O real resiste, seu 18º álbum solo (já são 28 anos desde a saída dos Titãs), com lançamento nesta sexta-feira (7), exclusivamente nas plataformas digitais, é a reunião de 10 canções serenas e enxutas. No formato, não na mensagem.



“Elas estão bem próximas de como a canção é composta, que é geralmente ao violão”, comenta Arnaldo, que gravou sem bateria ou percussão, utilizando instrumentos de cordas (Cézar Mendes no violão de nylon, Dadi na guitarra e baixo, e Chico Salem na guitarra e violões) e piano (Daniel Jobim). “Parti para esse caminho porque vinha compondo com Cézar Mendes, e as músicas dele já nascem clássicos.”

O álbum começa com uma homenagem a João Gilberto, composta quando o pai da Bossa Nova ainda estava vivo. Arnaldo chegou a conhecê-lo por intermédio de Cézar Mendes. João Gilberto morreu em julho do ano passado, aos 88 anos. João (Arnaldo/Cézar) fala de civilidade, de nação, conceitos tão discutidos nos tempos atuais, através do violão de “uma só pessoa” que “o silêncio aperfeiçoa”.

“João Gilberto é uma inspiração desde sempre. A maneira de ele interpretar, sua relação com o instrumento e a voz deram frescor à música popular brasileira. Uma lição dele, que é válida para mim desde o começo da carreira, é interpretar ao máximo o que a letra está dizendo, independentemente de gênero ou ritmo”, comenta Arnaldo.



Com Cézar Mendes ele também compôs a música que encerra o álbum, o samba Onde é que foi parar meu coração? Há ainda duas parcerias com a mulher, a artista plástica Márcia Xavier (De outra galáxia e Luar arder) e uma criação coletiva (com Pedro Baby, Pretinho da Serrinha, Carlinhos Brown e Marcelo Costa), que redundou em Na barriga do vento. A interpretação da letra, que remete ao afeto de um pai por seu filho, foi dividida com sua filha Celeste Antunes – Arnaldo tem quatro filhos e um enteado.

O real resiste foi gravado no Canto da Coruja, estúdio que fica no interior de São Paulo, o mesmo em que Arnaldo registrou seu álbum anterior, RSTUVXZ (2018). “Foi uma gravação bem rápida, pois praticamente gravamos todos juntos, a maioria dos arranjos foi feita na hora, já que o lugar é muito inspirador.”

MOSQUITO


As demais faixas são, letra e música, exclusivamente dele. Compositor prolífico, pode escrever sobre tudo. “A única coisa que não cabe ao fazer música ou poesia é forçação de barra. Não consigo escrever sobre algo com que não seja envolvido. Tanto que posso escrever sobre um mosquito voando, uma relação amorosa”, diz.



Língua índia e Dia de oca (a música com levada mais roqueira do disco) nasceram a partir de uma experiência que o cantor e compositor teve com os índios iauanauás, após uma visita à sua aldeia, no Acre. A coleção de faixas de O real resiste é toda recente. A exceção é Devagarinho, composta por ele ainda nos anos 1980. “Como a Illy gravou essa música no álbum Voo longe (2018) e, depois, fizemos juntos um remix com o Baco Exu do Blues, tive a vontade de fazer minha versão algumas décadas mais tarde.”

Ele ainda fala do fim da vida em Termo morte, nascida de um poema antigo que ele alterou para a gravação. “Não acredito em música que venha de uma vez só, estou sempre decantando. No caso da letra, mudo, tiro palavras, coloco outra. Estou sempre experimentando.”

No próximo dia 2 de setembro, Arnaldo chega aos 60 anos. “Tudo vai mudando, mas há coisas que se mantêm. Acho que o foco é melhor (quando se fala sobre a aproximação da velhice) quando a gente olha de fora. Com a gente mesmo vamos vivendo o dia a dia”, diz ele, comentando que Envelhecer, que ele gravou no álbum Iê iê iê (lançado quando completou 50), já trata muito do assunto. “O que me interessa é manter a inquietação, mesmo com a chegada da idade. Quero que me façam levantar, e não me sentar”, acrescenta.



O título O real resiste remonta a todos os temas universais que ele trata no disco, “coisas que prezo na vida”. E é também o nome do primeiro single, lançado em novembro. Composta no calor do segundo turno da eleição presidencial de 2018, quando Arnaldo estava em turnê com os Tribalistas no exterior, é uma letra de alguém perplexo diante de como o futuro estava se apresentando. “Miliciano não existe/Torturador não existe/Fundamentalista não existe/Terraplanista não existe/Monstro vampiro assombração/O real resiste/É só pesadelo, depois passa”, dizem alguns versos da canção. “A ideia era pensar se existe algo real que vá reagir a este pesadelo?”, questiona hoje Arnaldo.

Para ele, a resistência tem que ser o lema da sociedade brasileira. “Qualquer pessoa que preza a civilidade não tem como não se indignar com o que está acontecendo em relação aos valores democráticos, à liberdade de expressão, à preservação do meio ambiente. Resistir, hoje, se refere à cidadania e aos direitos humanos.”

O show do novo álbum será ainda mais enxuto do que o disco. Acompanhado apenas do pianista Vítor Araújo, Arnaldo dará início à turnê de O real resiste em março. Os ensaios começam na próxima semana. Além do novo repertório, ele deverá revisitar canções de outras fases da carreira. Pretende também interpretar alguns de seus poemas no palco. “Nunca fiz um show com um instrumento só. Sei, por ora, que vai ser mais introspectivo.”

O teatro de sombras, que inspirou o encarte do álbum (assinado por Márcia Xavier), também será levado para a cena. Uma amostra do que virá também poderá ser vista nesta sexta, quando estreia o clipe da canção De outra galáxia.

O real resiste

Arnaldo Antunes
Rosa Celeste (10 faixas)
Disponível a partir desta sexta (7) nas plataformas digitais