Após conflito com padre, organista se retira da Matriz de Tiradentes
Álisson André Sacramento assumiu em julho a paróquia e decidiu ampliar o acesso ao órgão histórico para outros músicos. Elisa Freixo se opôs à ideia, suspendeu seus concertos e resolveu deixar a cidade
Uma divergência de opinião entre a organista Elisa Freixo e o padre Álisson André Sacramento levou à decisão da musicista de encerrar seu trabalho com o órgão histórico construído pelo português Simão Fernandes Coutinho, instalado na Matriz de Santo Antônio, na cidade histórica mineira. Residindo em Tiradentes há mais de 10 anos, Elisa Freixo coordenou o restauro da parte técnica do instrumento, em 2009. Datado de 1785, o órgão está instalado na Matriz desde 1788.
Nascido em São João del-Rei, o padre assumiu a paróquia em julho deste ano. Na semana passada, Elisa comunicou sua saída “devido a uma mudança de orientação na Matriz de Santo Antônio de Tiradentes”. O texto distribuído por ela afirma: “Com a chegada do novo pároco, não podemos continuar com o formato de concertos semanais. Assim, nosso desligamento é necessário e nos leva a buscar outros locais para a sequência do projeto de concertos de órgão”.
Elisa diz que não há chance de voltar atrás em sua decisão. “Estou em paz, porém, não concordo com o fato de o pároco querer popularizar ou democratizar o acesso ao órgão. Não acho que é por aí. Assim, decidi sair para que as coisas sejam feitas de acordo com a vontade dele”, afirma. “Ainda não sei qual o caminho a tomar, porém, darei notícia do rumo de nossos projetos, já com a certeza do apoio que sempre tivemos.” Juntamente com Elisa, o organista Thiago Tavares também se desligou. “Nesses 10 anos, recebemos alguns dos mais importantes organistas internacionais e nacionais, assim como diversos músicos fabulosos, instrumentistas e cantores”, diz, ressaltando que encerra sua participação com muito orgulho do trabalho que realizou.
Ao conversar com a reportagem, Elisa Freixo disse que não deseja alimentar animosidades nem com o pároco nem com a população de Tiradentes, mas deixa claro que tem um pensamento diferente. “Não quero nem levar isso para a frente, pois já estou procurando outros lugares, emprego, enfim, estou me mexendo. Acredito que se criou um ambiente difícil na cidade, pois algumas pessoas falavam mal de mim e isso acabou sendo um problema também. Agora, se essas pessoas não gostam de mim, então chega, não vou mais ficar brigando para voltar. Alguns falam 'o trabalho dela é ótimo, mas ela é muito difícil'. Então, não quero dar volume para isso, pois acho tudo isso muito subjetivo.”
Ela conta que eram oferecidos cerca de 20 cursos, sempre com um ou dois alunos regulares. “Também abrimos para outros músicos tocarem todos os meses, isso há 10 anos e sempre trouxemos convidados. Tocávamos uma vez por mês na missa e tudo isso agora foi como se eu estivesse dando aula e não avisasse às pessoas que o curso está acontecendo. É complicado, simplesmente não concordei com o ocorrido. Não é só deixar o órgão na mão de qualquer um, pois o instrumento tem uma certa solidez. Acho que é uma questão mesmo de respeito ao patrimônio, de respeito ao público.”
A organista alega que os músicos locais e o pároco dizem que a música da cidade sempre foi feita por amadores. “Isso como se no século 18 houvesse amadores. Naquela época, todos eram profissionais, gente que estudava, pelo menos uma parte, caso contrário, esse órgão não seria tão bom. Se compraram um órgão tão bom, é porque sabiam o que estavam comprando. Caso contrário, seria um lixo de órgão. Eram tão profissionais que souberam escolher o órgão, mesmo a distância. Sendo assim, se a música sempre foi feita por amadores, não tem razão de ter um profissional.”
Segundo a musicista, um aluno foi comentar com ela que havia sido convidado a se apresentar na Matriz. Na avaliação dela, contudo, ele ainda não está preparado para tocar no órgão. “Eles estão escolhendo músicos para tocar lá e, diante dessa situação, estou desempregada e indo para São Paulo. Já estou com minhas coisas todas empacotadas, muito calma, estável e com a consciência tranquila”, afirma.
A organista cita que, durante 10 anos, o órgão era tocado em uma missa por mês e toda sexta-feira havia um concerto. “Acontece que o pároco sugeriu que eu fizesse um concerto e que outras pessoas fizessem os outros, o que não concordei, pois sou muito profissional e sempre trouxe músicos superprofissionais. Fico imaginando a semana seguinte, quando tocaria um amador, alguém que teve seis meses ou um ano de aulas de órgão, que não entendesse direito as coisas, ficaria difícil. Como é que o povo vai se orientar? Para mim, a saída foi a opção.”
Ela acredita que, se fosse feita uma reformulação no emprego do órgão, deveria ser em outro sentido. “Poderia cobrar um ingresso e fazer uma outra programação. Isso não haveria nenhum problema, desde que os organistas que tocassem estivessem num processo de aprendizado. Agora, uma pessoa que nunca usou o órgão não poderia tocar nele jamais, pois isso teria que ter um critério. Aliás, isso até já estava acontecendo, e eu sempre dizendo que teria de ter algum critério.”
Ela lamenta que a primeira providência tomada pelo padre tenha sido o cancelamento dos concertos. “Ele disse que queria rever as coisas. Praticamente não trabalhamos em julho. Ele também fez essa proposta para o meu assistente, uma vez que eu estava na Europa. Quando voltei, as coisas já estavam diferentes. Aí achei desconfortável. O órgão tem o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por trás, que também participou das reuniões e se posicionou. Eu não participei, e o pessoal do Iphan não conversou comigo.”
Álisson André Sacramento, o novo padre da Paróquia de Santo Antônio de Tiradentes, assumiu o cargo em julho e afirma que o bispo o encarregou de resolver algumas questões da paróquia, sendo uma delas a utilização do órgão. “Ele me disse para ver com atenção o que estava ocorrendo. Isso porque sempre se ouviu falar na cidade que havia algumas distorções quanto ao uso do órgão. Então, o bispo queria que eu averiguasse essa situação. Diante disso, o que fiz inicialmente foi suspender os concertos, que, até então, estavam marcados para o mês de julho.”
O pároco diz que, quando suspendeu os concertos, o seu primeiro passo foi ouvir diversas pessoas da cidade sobre o assunto. “Inicialmente, ouvi o pessoal da música, porque em Tiradentes tem uma orquestra sacra e, além disso, este ano estão sendo comemorados os 300 anos do início do movimento musical na cidade. Este foi o meu primeiro objetivo, ou seja, ouvir aqueles que já estão atuando diretamente. Acontece que eles demonstraram um certo descontentamento com Elisa e o assistente, principalmente, sobre a maneira como eram levados os concertos.”
De acordo com o pároco, a organista tinha alguns privilégios no acesso ao instrumento, e os músicos da cidade alegavam que não havia nenhuma chance para eles atuarem na igreja. “Eles diziam que, ainda que na orquestra não houvesse nenhum organista específico para esse tipo de órgão, eles não tinham o que a Elisa tinha, ou seja, o direito aos concertos semanais. Assim, me pediram para que fizesse alguma coisa em favor deles. Também ouvi outras pessoas da cidade, inclusive vários leigos, que trouxeram reclamações quanto à pessoa dela, em diversas situações.”
De acordo com o padre, depois de ter ouvido membros da comunidade, ele procurou a organista para uma conversa, na qual fez um relato da situação. “Inicialmente, ela não concordou com a nova situação, dizendo que o órgão tinha que ser tocado por profissionais. Respondi que, caso ocorresse uma outra situação, iríamos averiguar o currículo de quem o tocaria. Fizemos então uma reunião com todos os interessados. Elisa estava na Europa, mas, mesmo assim, lhe perguntei se o assistente dela poderia participar e falar em seu nome. Ela respondeu que sim e que entraria em contato com ele.”
O pároco conta que compareceram à reunião o assistente de Elisa Freixo, a organista Salomé Viegas, que tem um concerto todas as quintas-feiras, e os músicos da Orquestra Ramalho. “Nessa primeira reunião, o pedido foi que ocorresse uma democratização, que houvesse maior apoio à música da cidade e que eles pudessem ter acesso ao órgão. Então, perguntei como seria o acesso. Responderam-me que não havia organistas para esse tipo de instrumento em Tiradentes, mas que eles tinham conhecidos com muita experiência em órgão histórico.”
E, de acordo com o pároco, eles foram atrás de um músico de Barbacena, que se propôs a ajudá-los no que fosse preciso. “Então, essa democratização foi no sentido de que todos tivessem essa oportunidade, mantendo os concertos das sextas-feiras, porém fazendo um rodízio. Inicialmente, quando Elisa ainda estava Europa, ela aceitou a situação, lembrando que o assistente dela também estava dentro desse rodízio. Quando chegou é que veio com os questionamentos.”
E Elisa então se opôs ao que havia sido acordado na reunião, conforme relata o padre. “Posteriormente, ela me mandou um e-mail, lamentando que a sociedade de Tiradentes era, por vezes, hostil com ela. Mesmo assim, concordou em participar do rodízio, dizendo que permaneceria até janeiro. Porém, passada uma semana, me mandou outro e-mail, dizendo que não ficaria mais e que cancelaria todas as atividades dela. Devo esclarecer que foi iniciativa dela. Eu apenas quis ajudar o pessoal de Tiradentes.”
O padre garante que em momento algum disse que Elisa não poderia tocar no órgão. “Reconheço muito bem a capacidade, o nível que ela tem, pois é exímia nessa arte. De forma alguma quero mal a música, que tem fundamental importância na vida da igreja e reconheço isso. Ela tem dito que qualquer pessoa tocaria o órgão, o que não é verdade, pois, na reunião que tivemos, ficou muito claro que a pessoa interessada teria que apresentar o currículo, dizendo que é capaz de usar o instrumento. Isto também foi comunicado ao pessoal do Iphan, que não viu nenhum problema. O bispo também está ciente de tudo. Fui muito aberto com ela em todos os momentos.”
O pároco lembra que os concertos das sextas-feiras foram mantidos. “Para alguns grupos, como o de estudantes, por exemplo, temos horário especial na quinta à noite e domingo de manhã. Por enquanto, estamos com dois grupos, sendo um da organista Salomé Viegas e outro da Orquestra Ramalho. A partir de janeiro, abriremos um edital para pessoas interessadas, desde que apresentem o currículo.”