Artistas mineiros relembram histórias com João Gilberto, como o caso da bomba d'água; confira

Produtor Lúcio Oliveira relembra show do músico em Juiz de Fora, enquanto Toninho Horta, Affonsinho, Geraldo Vianna e Roberto Guimarães falam sobre a genialidade do criador da bossa nova

por Augusto Guimarães Pio 08/07/2019 08:00
Carlos Altman/EM/D.A Press
(foto: Carlos Altman/EM/D.A Press)

Inegavelmente, um gênio mundial. Arrancou elogios do astro norte-americano Tony Bennett, que o considerava o maior cantor do mundo, e do guitarrista inglês Eric Clapton, que, certa vez, manifestou o desejo de gravar com ele. João Gilberto, que morreu aos 88 anos no sábado, era (é) sim único. E a pergunta agora é: por que o seu jeito de tocar uma batida descompassada causou furor em milhares de músicos, muitos famosos e referências mundiais?

O guitarrista mineiro Toninho Horta, considerado um dos maiores do mundo, tem a resposta. “João Gilberto tinha muita personalidade, tocava macio, de maneira ímpar e não posso negar que tive influências dele, que foi realmente o pai da bossa nova. Não cheguei a gravar músicas dele, embora o considerasse um gênio. Ele fez a cabeça de muita gente, não só no Brasil”, destaca o músico.

O guitarrista explica que João Gilberto fazia variações na figura rítmica da bossa nova. Isto, meio que caracterizava cada música. Tinha um jeito único de tocar e cantar que ele mesmo criou. “Na canção Chega de saudade, é fácil notar que ele vem com uma batida sincopada, cheia de acordes dissonantes, somando a elementos do jazz. Ele era único, sem contar que sua habilidade para cantar era maravilhosa.”

Para o compositor, instrumentista e cantor Affonsinho, com sua batida, João Gilberto faz uma síntese de uma escola de samba. “Ele tem um surdo, um tamborim, o violão, ainda faz coisas de naipe de orquestra. É uma confusão que ele faz com o tempo e com a voz. Na canção Isaura, João faz uma brincadeira com Miúcha (sua ex-mulher), fica atrasando e adiantando a voz, como só ele sabia fazer, mas o chão estava ali, firme, seguro. Ele parecia ter uma bateria eletrônica dentro dele. Ele também suingava muito, ou seja, fazia uma 'bagunça' só com a voz e o violão.”

Affonsinho diz que a batida de João era única. “Ele adiantava e atrasava a voz e fazia o mesmo com o violão. Todos da bossa nova falam: 'A batida dele era um negócio diferente'. Ele fazia uma síntese de uma escola de samba no violão e de uma forma intimista, o que é muito impressionante. Teve músicas nas quais faz uma divisão rítmica com a mão direita. Nós, os violonistas e guitarristas, sabemos que nem sempre a mão esquerda é a mais importante. Em vários discos meus, procurava 'joãogilbertiar' as músicas, tocar no clima dele.”

Já o compositor e violonista Geraldo Vianna acredita que Chega de saudade é a música mais importante nesse período de transição da MPB. “O Brasil passava por forte influência das big bands, com seus foxtrots e crooners e vozes potentes. Em oposição, a bossa nova, muito além de um ritmo inovador, trouxe também uma nova forma de pensar e fazer a música.”

Vianna ressalta que o aspecto introspectivo do ritmo, associado ao movimento cool jazz e, claro, envolvido pela força de uma época sedenta de inovações e alternativas artísticas, amparada pela indústria e criatividade de seus executivos, ganhou o mundo. “O mais importante, pela qualidade musical e clareza de proposta artística. Impossível não se render à qualidade musical de Wave, Desafinado e Insensatez. Gravei muitos temas interpretados por João Gilberto. Porém, por minha formação musical e proposta estilística, o que mais se aproxima de sua forma de tocar é Chega de saudade”, gravada em 2004 no meu CD Solos de violão.”

O violonista garante que João Gilberto trouxe algo novo para a música, o canto e para o violão. “A dimensão, na música popular brasileira, do que conhecíamos como linguagem de acompanhamento violonístico, tornou-se algo quase simplório. Seus acordes inovadores, sua abordagem rigorosamente rítmica, associada à liberdade da melodia, foram fundamentais para a evolução de nossos músicos, de nossa improvisação. Sua mão direita tocava acordes, e não notas, produzindo harmonia e ritmo ao mesmo tempo. Tornamo-nos órfãos com sua partida”, lamenta o músico mineiro.

BOMBA D'ÁGUA DESLIGADA Embora fosse considerado por muitos como sendo uma pessoa difícil e extremamente exigente com a produção técnica de seus shows, João Gilberto não enfrentou grandes contratempos em suas passagens por Minas. Para o produtor Lúcio Oliveira, da Art BHZ, que trouxe o músico baiano para se apresentar no estado algumas vezes, o artista nunca lhe trouxe maiores problemas. “Foi tranquilo todas as vezes que ele veio aqui em BH. Às vezes, ele brigava com o rapaz do som, como ocorreu certa vez no Minascentro, pedia para desligar o ar-condicionado, mas porque era muito perfeccionista. Era reservado, mas extremamente talentoso.”

Lúcio conta que, certa vez, levou o músico para um show em Juiz de Fora. “João Gilberto implicou com o barulho de uma bomba d'água que estava ligada em um prédio, a umas duas quadras do teatro. Diante disso, não começou o show até que fôssemos ao local para pedir encarecidamente que desligassem a tal bomba. Pedido atendido, show realizado. O resultado, como sempre, foi uma belíssima apresentação, terminando com o público aplaudindo de pé. Lamentavelmente, o gênio se foi.” 

'Putz, ter uma música minha gravada por João Gilberto, que honra!'

Assim como o mineiro Ary Barroso, Roberto Guimarães, de 80 anos, um dos pioneiros do movimento da bossa nova em Minas Gerais, teve o privilégio de ter música gravada por João Gilberto. Trata-se de Amor certinho (1960). Roberto conta que seu encontro com o músico baiano foi fruto do acaso. “Ele já havia lançado o seu primeiro LP, ainda no final dos anos 1950 e veio a Belo Horizonte fazer um show no Minas Tênis Clube. Fui lá ver com umas amigas e o salão estava lotado”, lembra.

Após o show, Roberto se encontrou com João Gilberto na casa em que o baiano estava hospedado, no Bairro de Lourdes. “Ficamos conversando na sala até que resolvi lhe mostrar algo meu e cantei para ele umas quatro músicas autorais. De repente, ele disse: 'Por favor, toca a segunda música de novo'. Toquei umas duas ou três vezes, ele pegou uma caneta e papel e começou a anotar algumas coisas. Pegou também o violão e tirou a harmonia da música na hora e, lendo a letra que anotei para ele, a cantou com toda a sua maestria. Meus cabelos arrepiaram”, lembra o músico mineiro.

Mas não parou por aí, porque João Gilberto lhe pediu o seu endereço, telefone, nome, identidade e CPF. “Estou anotando seus dados porque vou gravar esta música no meu próximo disco”, disse. Roberto conta que ficou eufórico. “Putz, ter uma música minha gravada por João Gilberto, que honra!” A canção está no disco O amor, o sorriso e a flor, de 1960.

Roberto ainda encontrou com João Gilberto por diversas vezes no Rio de Janeiro. “Ele era muito reservado, mas conversávamos bastante. Certa vez, na Cidade Maravilhosa, liguei para ele que me disse: 'Venha aqui em casa'. Ele morava no Leblon e eu ficava hospedado em Botafogo. Lembro-me que peguei um ônibus e parti para lá. Chegando ao apartamento dele, ele me disse: 'Me desculpe, mas estou de saída, estou indo encontrar com o Tom. Vem comigo?'. E fui, na cara de pau. Chegando lá pude conhecer o próprio Jobim, Carlos Lyra e Menescal. Foi muita sorte. Assim é a minha história com a bossa nova e com o gênio.” 


“Na canção Chega de saudade, é fácil notar que João Gilberto vem com uma batida sincopada, cheia de acordes dissonantes, somando a elementos do jazz. Ele era único”

 Toninho Horta, guitarrista

 Ele tem um surdo, um tamborim, o violão, ainda faz coisas de naipe de orquestra. João Gilberto parecia ter uma bateria eletrônica dentro dele. Ele também suingava muito, ou seja, fazia uma 'bagunça' só com a voz e o violão”

Affonsinho, músico

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