"Nós sempre sentimos o mesmo/ Apenas vimos as coisas de um ponto de vista diferente” é a tradução dos últimos versos de Tangled up in blue, canção de abertura de Blood on the tracks, 15º álbum de estúdio de Bob Dylan, de 78 anos. Lançado em janeiro de 1975, o disco amparou o cantor e compositor Hélio Flanders muitos anos mais tarde.
Ele era apenas um adolescente de Cuiabá que sofria com sua primeira decepção amorosa. Ouvir Dylan entoando “we always did feel the same/ we just saw it from a different point of view” o fez entender muita coisa. E Dylan nunca deixou de acompanhá-lo. “Reverenciá-lo de maneira exacerbada vai contra tudo o que ele próprio sempre pregou. Então, qualquer pessoa que quiser fazer um disco de Dylan, deve fazer do jeito que quiser”, afirma Flanders, de 34.
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Reúne 16 faixas, boa parte entre as mais conhecidas do repertório de Dylan – Blowin' in the wind, Hurricane, Like a rolling stone, Don't think twice it's all right, Just like a woman, It's all over now, baby blue. “Tocar os hits era inevitável. Mas há canções para um fã mais avançado de Dylan, como as três que abrem Blood on the tracks (Tangled up in blue, que abre o álbum do Vanguart, Simple twist of fate e You're a big girl now). Nelas, ele trabalha o tempo através de histórias fragmentadas, sofisticadas, em que vai da primeira para a terceira pessoa”.
SHOW Se há várias razões afetivas para gravar Dylan, por que fazê-lo agora? “A gente começou esse projeto com um show em 2010, a pedido do Sesc em São Paulo, que marcou a entrada da Fernanda na banda”, relembra Flanders. Ao longo de quase uma década, o repertório foi executado eventualmente pelo grupo, que em 2018 gravou especial para o canal Bis com as canções de Dylan – o programa foi produzido por Rafael Ramos, dono da Deck, gravadora do Vanguart. A sugestão partiu dele, que acabou produzindo o álbum.
“O Reginaldo e eu (os principais compositores do Vanguart) estávamos em dois momentos bem específicos, eu na Itália pesquisando música italiana e ele fazendo as coisas dele no Brasil. Não daria para fazer um disco autoral. Dessa maneira, esse disco calhou na hora certa”, acrescenta.
Depois de um dia e meio de ensaios, o quarteto – com os convidados Júlio Nganga (piano e órgão), Kezo Nogueira e Pedro Gongom (bateria e percussão) – passou cinco dias gravando em estúdio. “Tudo ao vivo, voz e violão juntos. Se tocássemos muito, perderíamos a espontaneidade”, continua Flanders.
Os primeiros shows serão neste fim de semana, em São Paulo. Para que o público possa acompanhar a verborragia dylanesca, as letras serão traduzidas em um telão. Sem querer inventar a roda, a banda não subverte arranjos ou tenta mudar o tom das gravações originais. É um registro com afeto e respeito. Serve como boa introdução ao universo de Dylan para aqueles que ainda não foram arrebanhados por ele.
Mentiras sinceras
Na era das fake news, Martin Scorsese dá uma (boa) rasteira no público. Rolling Thunder Revue: a Bob Dylan story by Martin Scorsese, documentário lançado há pouco pela Netflix, é o melhor retrato de um artista quando jovem (no caso de Dylan, nem tanto assim, pois ele havia passado dos 30). Ao telespectador cabe ler nas entrelinhas: nem tudo o que está ali é verdade. E isso, no frigir dos ovos, não faz tanta diferença.
Rolling Thunder Revue é a turnê que Dylan empreendeu nos Estados Unidos entre outubro e dezembro de 1975 e abril e maio de 1976. Ao todo, foram 48 shows. Dylan criou uma excursão que foi um sucesso do ponto de vista artístico e um fracasso comercial.
Com mais de 30 pessoas, entre músicos e técnicos, ele saiu pela estrada (o próprio Dylan era o motorista de um dos ônibus) fazendo shows para até três mil pessoas. A turnê tinha vários convidados: as cantoras Joan Baez e Joni Mitchell, o poeta beat Allen Ginsberg, a violinista Scarlet Rivera, Roger McGuinn, ex-vocalista e guitarrista dos Byrds, o dramaturgo e cineasta Sam Shepard.
Tudo foi registrado para um documentário que nunca saiu do papel. Scorsese, que nas seis horas de No direction home (2005) fez o retrato completo de como Dylan se tornou a voz da geração dos anos 1960, faz em Rolling Thunder Revue uma viagem tanto pela trajetória do artista quanto da própria América.
Em 1975, os EUA estão na ressaca pós-Watergate e pós-Vietnã. Nixon já havia renunciado e o presidente Gerald Ford havia sofrido duas tentativas de assassinato. É essa nação, que tenta juntar os cacos e mirar o futuro, que está no foco.
Em sua primeira aparição no filme, Dylan se sai com esta: “É só uma coisa que aconteceu há 40 anos. Nem me lembro da Rolling Thunder”. Mas o grosso do material é dos registros de época. E eles são irrepreensíveis.
Em um show, Dylan está com o rosto coberto por maquiagem branca, olho carregado de rímel e chapéu florido. As imagens e o som das apresentações são o que de mais empolgante já vimos dele. E há os bastidores. Dylan, ao lado de Ginsberg, falando de poesia junto do túmulo de Jack Kerouac; Dylan e Joan Baez explicando por que não estavam mais juntos.
O momento maior da narrativa de Scorsese é quando Dylan executa Hurricane. A canção, que descreve atos de racismo que culminaram na prisão indevida do pugilista Rubin “Hurricane” Carter, foi gravada em novembro de 1975. Dylan chega sem avisar à sede da gravadora CBS Records para pedir que a música de 8,5 minutos vá para as rádios. Lá, assistimos a uma performance arrasadora dele. Carter se encontra com Dylan, na época, e fala mais recentemente de sua relação com o compositor. O pugilista morreu há cinco anos.
Passado, presente e futuro, tudo está ali. E há ainda as mentirinhas contadas por Scorsese. Sharon Stone surge como a jovem de 19 anos que teria ido com a mãe a um dos shows de Dylan e passado a acompanhar a turnê. Há também o diretor da filmagem original, que teria bancado tudo do próprio bolso. Chamado Stefan van Dorp, ele, na verdade, foi interpretado por Martin von Haselberg. Um congressista chamado Jack Tanner próximo a Jimmy Carter? Esqueça, tal político nunca existiu.
Há outras não verdades, que em nada prejudicam o longa. É o espírito da época, aqui traduzido por Scorsese, que conhece Dylan como poucos. A música, no fim das contas, fala mais alto.
VANGUART SINGS BOB DYLAN
Deck
16 faixas, disponíveis em todas as plataformas digitais
CD: R$ 24,90
Compacto com as faixas Tangled up in blue, Don’t think twice it’s all right e Blowin’ in the wind: R$ 40