Tem bolero, tem samba, tem tango. Ele canta em português – claro –, mas também em espanhol e francês. Em seu novo disco, Carlinhos Lyra, um dos principais representantes da bossa nova, vai muito além desse gênero musical tão brasileiro.
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Lyra acaba de lançar o disco Além da bossa, nos formatos físico e digital. “A mídia engessou o gênero no ‘samba bossa nova’, mas ela não é só isso. Mostro essa maneira de compor com todas as minhas influências de Ravel, Debussy e Stravinsky, além da música francesa, bolero mexicano, standards norte-americanos, tango, valsa e toada. Enfim, influências de tudo o que ouvi e assimilei. Bossa nova, acima de tudo, é uma estética”, afirma.
O novo disco é o primeiro trabalho autoral de Carlinhos Lyra depois de um hiato de 25 anos. O álbum levou cerca de 30 meses para ser concluído. O esmero valeu a pena, pois não deixa de ser uma retomada dos áureos tempos da música popular brasileira. Autor dos clássicos Minha namorada e Coisa mais linda (com Vinicius de Moraes) e Lobo bobo e Saudade fez um samba (com Ronaldo Bôscoli), ele diz que ficar anos sem lançar um CD só seu nunca o preocupou. O último foi Carioca de algema (1994).
Nesses 25 anos, Lyra se dedicou a vários projetos, como a celebração de suas cinco décadas de carreira, a gravação de um DVD e um livro de memórias.
CURTIÇÃO
O processo de produção de Além da bossa foi “só curtição”, conta. “Fui acarinhado por todos que participaram. Meu trabalho era só cantar. O maior desafio foi escolher os tons certos e interpretar da melhor maneira possível, com sentimento. Quando gravei Passageiros (parceria com o sobrinho Claudio Lyra), saí da cabine emocionado. Enquanto gravava E era Copacabana (parceria com Joyce Moreno), meu produtor, Alex Moreira, chorava. Foi nesse clima.”
Empolgado, Lyra garante: Além da bossa é seu melhor álbum em 85 anos de vida e 65 de estrada – o primeiro disco em que todas as suas ideias foram respeitadas. O lançamento é do selo MCK, criado por ele.
“O produtor Alex Moreira respeita tanto minha obra quanto meus critérios. Ele me deixou livre pra fazer somente o que eu acreditava ser o melhor. Alex deu a ideia de convidarmos amigos para as orquestrações, e a Magda (mulher de Carlinhos, produtora executiva do disco) fez uma lista comigo. Talvez, o trabalho mais criterioso foi saber qual música caberia no estilo de cada um. As grandes ideias foram do Alex, eu só ia moldando de maneira que me sentisse confortável”, conta.
MINAS
A faixa-título é parceria de Lyra com o compositor Daltony Nóbrega, de Juiz de Fora. Carlinhos é só elogios a Minas e aos mineiros. Lembra seus “ótimos papos” com o compositor Fernando Brant (1946-2015), destacando também o sua admiração por João Bosco, Juarez Moreira, Fernando Sabino, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Zuenir Ventura, Fernando Gabeira e Affonso Romano de Sant’Anna.
“Minas respira boa música e literatura. Independentemente de ser mineiro de nascimento, viver em Minas faz com que as pessoas tenham uma escola de respeito. Aí tem o Milton (Nascimento), Toninho Horta e o Ronaldo Bastos (nascido em Niterói), que vem a reboque e tem uma parceria comigo no álbum”, diz, referindo-se à bonita canção Belle époque. “O que falar dos mineiros? O melhor é ouvi-los e lê-los sempre, em qualquer tempo. Minas fervilha cultura.”
O novo projeto conta com vários companheiros de Carlinhos Lyra: Marcos Valle, Dori Caymmi, João Donato, Jacques Morelenbaum, Flavio Mendes, Antonio Adolfo, Dirceu Leite, Jessé Sadoc e Claudio Lyra.
POESIA
Um dos destaques do repertório é Quando ela fala, poema de Machado de Assis musicado por Carlinhos. Aliás, outros versos também se transformaram em canção. É o caso de As duas flores, de Castro Alves, e Val de Fuenteovejuna, do poeta e dramaturgo espanhol Félix Lope de Vega.
Com exceção de Aonde andou você, que havia gravado em seu segundo LP em 1961, as outras 14 faixas não haviam sido registradas por ele. Pelo bem da vida (parceria de Lyra com Paulo César Pinheiro), por exemplo, foi registrada por Nélson Gonçalves em 1980. Até o fim (com Marcos Valle), por Emílio Santiago. E era Copacabana, por Dori Caymmi e Joyce. “Eram as versões deles. Aqui é a gravação do compositor, do jeito que fiz, do jeito que sinto”, pontua.
Aos 85 anos, o cantor e compositor carioca diz que procura ser fiel a si próprio. “Enquanto tem energia, o artista precisa estar ativo. Nós nos alimentamos do aplauso e da interação com o público. Com a idade, me dou ao luxo de só fazer o que acredito e procurar mostrar o melhor de mim. Quando a gente é jovem e está começando, às vezes produzimos coisas compulsivamente. Coisas que muitos não sabem jogar no lixo. Com a idade, você fica mais seletivo”, enfatiza.
Lyra se orgulha de sua trajetória. “Nunca fiz o que não acredito, nunca me rendi ao que o mercado queria. Por muito tempo, ouvi que era uma pessoa difícil, mas é apenas integridade artística. Tenho orgulho da minha obra”, conclui.
PATROCÍNIO
Carlinhos Lyra está batalhando para fazer a turnê Além da bossa. “Vamos trabalhar para conseguir montar o show, com 10 músicos no palco. É um momento muito difícil para o país e para a cultura. É preciso deixar claro: nós, artistas, somos ferramentas da cultura. Não somos usurpadores, precisamos de patrocínio para que nossas obras sejam levadas ao público. Isso ocorre desde a época dos Médici, no século 15! O que seria de Michelangelo e de tantos outros se não houvesse patrocínio? É isso que deixa a cultura viva”, defende.
ALÉM DA BOSSA
. De Carlinhos Lyra
. MCK
. 15 faixas
. Preço médio: R$ 50
. Disponível em todas as plataformas digitais