Remanescentes da Gang 90 e as Absurdettes retomam a carreira da banda

Liderado por Júlio Barroso, morto aos 30 anos, em 1984, o grupo influenciou o pop brasileiro e teve letras gravadas por diversos outros nomes da música

por Mariana Peixoto 22/02/2019 08:10
Edouard Fraipont /Divulgação
A atual formação da Gang 90 tem Gilvan Torres (à esq.), Tamima Brasil (no sofá), Beto Firmino (ao piano), Paulo Lepetit (à dir.) e Taciana Barros (ao centro) (foto: Edouard Fraipont /Divulgação)
Compositor, cantor, jornalista e agitador cultural carioca, Júlio Barroso encontrou a morte em 6 de junho de 1984. O fundador da Gang 90 e as Absurdettes tinha 30 anos. Ainda hoje, três décadas e meia mais tarde, não se sabe se a queda da janela de seu apartamento em São Paulo foi acidental ou não – a hipótese mais aceita é de acidente.


Dois dias depois da morte de Barroso, sua namorada, Taciana Barros, então com 19 anos, tecladista da Gang 90, se fechou na casa de seu irmão. Um mês mais tarde, resolveu sair para ir a um show do Barão Vermelho em São Paulo. Ao chegar, falaram que, depois da apresentação, se encontrasse com Cazuza no camarim, pois ele queria vê-la. “Ele me recebeu cantando Kamikaze coração, que havia conhecido numa versão demo. E me disse: ‘Taci, você não vai deixar de gravar o disco. Vou levar vocês para a gravadora (Som Livre) da qual meu pai (João Araújo) é diretor artístico.’”

Kamikaze coração, na verdade, se chama Rosas e tigres (Júlio Barroso/Roberto Firmino/Taciana Barros), faixa-título do segundo álbum da Gang 90. “Um mês depois (do encontro com Cazuza) entramos em estúdio. O luto virou um álbum”, conta hoje Taciana. E pouco mais de 30 anos depois do último show da Gang (que existiu de 1981 a 1987) o grupo volta à ativa.

Neste primeiro momento, a Gang – Taciana Barros (voz e piano), Herman Torres (voz e guitarra), Paulo Lepetit (baixo), Gilvan Gomes (guitarra), Beto Firmino (teclados e voz) e Tamima Brasil (bateria) – retorna para dois shows, amanhã (23) e domingo (24), no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Mas os planos vão além deste fim de semana. “A gente vai gravar os shows para talvez lançar em vinil. Só que está tanta loucura agora que não estou conseguindo pensar no que vem depois. Quando lançamos o Pequeno Cidadão não sabíamos que estaríamos aí 10 anos depois”, diz ela. Somente Tamima Brasil (que integrou a banda de Cássia Eller) não fez parte da Gang 90. A baterista foi chamada para substituir Gigante Brazil, morto em 2008. Não é difícil a nova Gang vir a Belo Horizonte. Taciana comenta que,  depois de São Paulo, a capital mineira foi a cidade que mais recebeu shows do grupo (dedos cruzados então).

VOCALISTAS Junto à Gang 2019 estarão as vocalistas Bianca Jhordão e Elô Paixão, que farão as vezes das Absurdettes Alice Pink Punk, May East e Lonita Renaux (codinome de Denise Barroso, irmã de Júlio, morta em 1993). Também participam dos shows Edgard Scandurra (o guitarrista tocou em algumas apresentações do início da carreira da banda e produziu Pedra 90, derradeiro álbum da Gang), o cantor Filipe Catto, o guitarrista Lúcio Maia, da Nação Zumbi, o pianista Tiago Frugoli e o cantor Rodrigo Carneiro.

“Embora estejamos há 30 anos sem tocar juntos, a gente se encontra periodicamente. Sempre houve essa vontade (de voltar), até que, no ano passado, resolvemos fazer uma comemoração. Fui ouvir os discos – havia anos que não os ouvia – e vi como o trabalho continua bacana. Resolvemos dar uma retomada, sem grandes expectativas”, diz Lepetit, que entrou para o grupo para o segundo álbum – ele não chegou a conhecer Júlio Barroso. O retorno da Gang já gerou uma inédita, Quero sonhar com você, de Taciana e Lepetit (leia a letra nesta página).

Para Taciana, é chegada a hora “de contar para as novas gerações quem foi Júlio Barroso”. Para muitos, a morte precoce de Júlio, precursor da new wave no Brasil, encerrou a carreira daquele que poderia ser um dos maiores autores da geração 80. Quem tem menos de 40 não deve saber, por exemplo, que a Gang 90 nasceu da performance Perdidos na selva, que Júlio e as Absurdettes apresentaram na boate Pauliceia Desvairada. Não sabe ainda que foi a música Nosso louco amor, canção-tema da novela Louco amor, exibida na Globo em 1983, que garantiu uma popularidade imensa para a banda. Ou então que, no antológico especial infantil para TV Plunct plact zoom (1983), a banda participou com a canção Será que o King Kong é macaca?.

No entanto, independentemente de sua idade, não há como um fã de música pop não conhecer versos como “Já foi assim/mares do Sul/entre jatos de luz/beleza sem dor/a vida sexual dos selvagens” (Nosso louco amor); “Pra quem ama a distância não é lance/Nossa onda de amor não há quem corte” (Telefone); “Eu e minha gata rolando na relva/Rolava de tudo” (Perdidos na selva); e “Você está me convidando/Menina quer brincar de amar” (Noite e dia). Se não pelas gravações da Gang, pelos registros do Barão Vermelho, Marina Lima, Ira!, Lobão (que chegou a integrar a banda de Barroso), Sandra de Sá e Blitz.

HISTÓRIA “O Brasil não costuma valorizar sua história. Aqui, se a gente não agarrar e contar de novo, ninguém fica sabendo”, diz Taciana. Da história da Gang, além de vídeos que vez ou outra chegam ao YouTube, há o documentário Marginal conservador (2013), em que o jornalista Ricardo Alexandre recupera a trajetória de Júlio Barroso.

Além dos shows deste fim de semana, está previsto o lançamento do livro Wave – A nossa onda de amor não há quem corte (selo Demônio Negro). Organizada pela poeta Natália Barros, a obra reúne poemas, textos e ilustrações inéditas de Barroso. É o segundo livro póstumo dele. Em 1991, sua irmã Denise organizou A vida sexual do selvagem (editora Siciliano, esgotado), que também compilou escritos de Júlio.

“Wave é muito focado no universo poético do Júlio, não tem nada da vida pessoal. Com o livro, a pessoa vai entender a complexidade poética dele de forma compacta”, afirma Taciana. A maior parte do material reunido no livro estava no acervo da própria Taciana. Júlio teve um filho, Rá Barroso, seu herdeiro. “Tivemos muita sorte, porque o Rá viu a importância de manter viva a história.”

O livro ainda traz luz à revista Música do Planeta Terra, fanzine que Barroso lançou na década de 1970. “Foi a primeira revista do Brasil a falar de reggae e punk. Teve textos de Caetano, Waly Salomão, Jorge Mautner e, aos poucos, conseguimos recuperar alguns números”, conta Taciana. Logo no início do livro, por exemplo, descobrimos de onde veio a letra de Telefone. No poema Telefone talk blues (carta para Carlos Alberto Malta, 1980), ele escreve pela primeira vez os versos “São três horas da manhã você me liga/Pra falar coisas que só a gente entende”.

“A gente morava junto no apê quando ele morreu. Fiquei guardando as coisas dele pensando que uma hora iria usá-las. Agora sei o motivo: abri o baú pela vontade de contar essa história”, diz Taciana.




Quero sonhar com você
(inédita de Taciana Barros e Paulo Lepetit)


Quero sonhar com você
Pra te ver em movimento
Pra te proteger do frio
Pra sentir a tua pele
Pra beijar a tua boca

Quero sonhar com você
Lua cheia num deserto
Atravessar com calma um rio
A favor da correnteza
Sem nenhuma incerteza

Trezentos cavalos livres
Quinhentos pássaros amarelos
Milhões de peixes prateados

Quero um sonho libertário
Você ali sempre rindo
Quero um sonho tranquilo
Profundo e sem nexo
Repleto
De carinho
Amor
E sexo

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