Tem reggae, samba, rock, blues, punk e brega e referências sonoras de épocas e procedências distintas. Folhuda, terceiro álbum de Juliana Perdigão, disponível a partir de hoje nas plataformas musicais, é uma salada musical. São 12 poemas musicados, pinçados dos livros de sua estante ou fruto de parcerias. Assim, há versos de Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade (1890-1954), de Murilo Mendes (1901-1975) e de novos poetas – Renato Negrão, Fabrício Corsaletti e de sua companheira Angélica Freitas.
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Em Folhuda, ela assina todas as composições e, além de cantar, usa e abusa de sua erudição como instrumentista – toca guitarra, percussão, violão, clarone e clarinete. E, mesmo com a diversidade de gêneros e cada faixa apontando para uma direção musical diferente, o álbum tem coesão na sonoridade da poesia. “Não gosto muito de poema muito complicado, rítmica e melodicamente, gosto de ouvir, mas não de cantar”, afirma Juliana, acrescentando que buscou poemas curtos e de comunicação direta.
Já que se trata de um disco de poemas musicados, a artista explora o recurso da prosódia, com repetição de sílabas, consoantes e vogais, criando ritmos e melodias a partir dessas combinações. Na faixa Máquinas líquidas, o poema de Leminski recorre às proparoxítonas, destacando a vogal “i”. O mesmo recurso com a vogal “o” aparece em Só o sol, de Arnaldo Antunes, parceiro nesta canção mais experimental, cuja sonoridade remete ao Caetano Veloso de Joia ou ao Walter Franco de Ou não. Arnaldo Antunes faz outra parceria com Juliana em Torresmo, em que os dois cantam juntos e exploram o contraste de grave e agudo nos vocais. “As participações deste disco são muito especiais e queridas”, conta ela, que chamou Ava Rocha, Cecília Luchesi, Tulipa Ruiz, Iara Rennó e Angélica Freitas para o coro do punk Mulher depressa (Angélica Freitas e Renato Negrão) e Mulher limpa (Angélica Freitas), rock que abre o álbum.
Como nasceu esse projeto de fazer um disco de poemas musicados?
Veio de um desejo meu de experimentar compor mais e de fazer isso de uma maneira mais solitária.
Você assina todas as composições do álbum, que tem uma grande variação de gêneros musicais. Como foi compor em gêneros tão distintos? Os poemas lhe deram a direção?
Sim, tem uma sugestão de queima, de imagem de cada poema, que me trouxe alguns desses gêneros. A partir do momento em que ia compondo, fui percebendo com o conjunto das músicas essa coisa dos gêneros e, na hora de gravar, quis fazer sem sair do estilo, da linguagem de cada um. Tipo, um reggae. Então vamos fazer um reggae mesmo, o punk é um punkão mesmo. Tem essa brincadeira, como se fosse um pastiche de gênero em cada uma das músicas, cada uma tem alguma coisa bem característica do estilo. E tem a presença da prosódia, do ritmo natural da fala, e da melodia, que vem na leitura do poema, que, às vezes, já vem e sugere um ritmo, não só do poema, como das palavras que estão no poema. Então, no ritmo em que se lê, já surge uma ideia rítmica e melódica. A maioria das variações melódicas faço meio sem cálculo, acontece naturalmente, ainda mais nesse disco, que tem muita repetição.
Em relação ao seu disco anterior, Ó, Folhuda soa mais pop, embora esteja longe de ser um pop fácil e comercial. Como você transita entre o experimental e o pop?
Quando percebi nos poemas e nas músicas que já tinha um corpo e poderiam se tornar um disco, procurei poemas curtos em que eu poderia trabalhar com repetição e que soassem como canções mesmo e não como poemas musicados. Procurei poemas bem musicáveis, rítmicos. A maioria deles não tem palavras complicadas (em termos de léxico), são palavras corriqueiras. Claro que são postas de maneiras que só os poetas sabem fazer, mas busquei essa simplicidade nos poemas. Foi intencional que fosse bem comunicativo. E quis que fossem canções com uma parte, outra parte, refrão. Foi proposital. Sobre experimental e pop, gosto de fazer música de vários jeitos. Esse é um trabalho, no próximo, posso fazer um disco de duo de clarone e teremim, ou não, mesmo dirigido para o mercado, mas é o que me instiga.
Fica evidente nesse trabalho a afirmação da sexualidade e do feminino. Como é, para você, abordar esse tema num país com a atual taxa de feminicídio, de ameaça aos direitos, etc.?
A gente está nesse período em que simplesmente existir, eu como uma mulher gay, artista, já é uma maneira de afronta para esta sociedade que comanda nosso país. Mas, falando de mim e desse disco, acho que teve uma transformação entre um disco e outro, principalmente por causa da convivência com a Angélica e dos dois poemas dela presentes no disco. São poemas de um livro que se chama O útero é do tamanho de um punho, que trata sobre mulheres, questões com as quais nos deparamos na vida. Tem bastante a influência dela. É um disco que me abre o olho para certas questões, para o que é ser mulher numa sociedade machista pra caramba. E tem bastante o desejo de dizer, através do que faço, que existe uma diversidade de existências, de busca da aceitação e da convivência com as diferenças. E o que a gente tem que fazer é existir e não entrar em uma taxa dessas aí, em estatísticas. A gente tem que continuar a fazer o que a gente sempre fez, não ter medo, não ficar acuada, não cair no papo desse pessoal que quer controlar o nosso comportamento e o comportamento do outro, porque isso é o grande problema. A gente tem que fazer o que a gente tem que fazer. É para isso que serve tudo o que a gente faz – marcar uma posição, marcar um desejo. É meio uma missão mesmo.
A política está presente de várias maneiras, insinuada ou explícita. Mas o disco termina com Noturno, o violeiro, que soa como um lamento. É um retrato do país?
A última música, sim. Noturno e Violeiro são dois poemas do Oswald (de Andrade) que juntei e fiz uma canção. E, sim, quando gravei essa música e toda vez que a canto ao vivo, penso nisso, nessa divisão: “O trem divide o Brasil como um meridiano”. E, claro, é inevitável pensar nessa divisão política que a gente está vivendo. Ela tem um quê de melancolia, mas ela acaba falando das voltas da vida, ela acaba dizendo que a gente vai conseguir sair dessa também como país. Esses dois poemas são diferentes, mas as cenas se comunicam de alguma maneira, o luar e, depois, uma pessoa caminhando e passando na porta da casa de outra pessoa. Enfim, eles podem ter uma conexão cênico-visual e tem uma coisa positiva de reviravolta.
DEPOIMENTO
“Juliana sempre foi irrequieta, curiosa e envolvida com o que de melhor, mais diverso e interessante há nas práticas artísticas. Com ela me encontro nesse ambiente que mescla despojamento e rigor, deboche e lirismo, crueza e sofisticação. Ela constrói uma linguagem atenta à transa entre o trânsito e o transe. Apesar de a nossa troca existir há muitos anos, tanto na música quanto nas artes visuais, Juliana tem sido responsável por reavivar meu tesão de compor canções. Desde que gravou em seu primeiro álbum Que bom – cujo refrão “que bom ser contemporâneo seu” se tornou hit local e síntese de uma geração que entende a dimensão do afeto em tempos sombrios – me fez também acreditar mais nas minhas ideias e caminhos melódicos, na delícia de compor juntos. Nossa afinidade é tanta que, além de ter musicado o poema Felino – do meu livro Vicente viciado –, encontramos ainda um amor comum e agregamos a essa parceria os poemas da Angélica Freitas. Nesse novo álbum, então, ela mostra uma das canções que fizemos, Mulher depressa, das muitas que devem surgir aí pela vida.”
. Renato Negrão, poeta
FOLHUDA
De Juliana Perdigão
Circus
12 faixas
Disponível nas plataformas digitais