Muito além de uma biografia, um documento histórico. Também não deixa de ser um estudo sobre a ancestralidade, a negritude, a territorialidade e o racismo. Martinho da Vila – Reflexos no espelho (Pallas), livro da pesquisadora, professora e mestre em educação Helena Theodoro, oferece uma visão aprofundada não só a respeito do cantor e compositor fluminense, mas de sua importância para a cultura afro-brasileira.
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O primeiro encontro de Helena com Martinho ocorreu nos anos 1970. Os pais dela, que sempre tiveram contato com estudiosos da cultura negra, a levaram a um jantar na casa do cônsul do Senegal no Rio de Janeiro. Os dois ficaram amigos. Porém, só a partir de 1985, quando elaborou sua tese de doutorado sobre o ideal de pessoa humana na cultura negra e suas implicações na moral social brasileira, a pesquisadora percebeu que o sambista era um importante objeto de estudo.
“Fiz uma reflexão sobre as mulheres. Como princípio masculino, enfoquei o Martinho como um dos exemplos de axé e vida”, relembra Helena Theodoro. Em sete capítulos, o livro trata das origens do compositor, poeta e escritor; do sucesso dele; dos anos 1990 (com foco no samba e na religiosidade); da família; e do novo século. Também traz a bibliografia e a discografia do artista fluminense.
Com apresentação da jornalista Flávia Oliveira, prefácio do pesquisador Ricardo Cravo Albin e orelha assinada pelo escritor e historiador Luiz Antonio Simas, Reflexos no espelho ressalta a relação de Martinho da Vila com a territorialidade e sua comunidade. Já nas primeiras páginas, aborda os dois lugares que moldaram a formação dele: Duas Barras, no interior do Rio de Janeiro, sua terra natal, e o bairro carioca de Vila Isabel, onde ficou raízes.
Enquanto o município fluminense tem tradição ligada à folia de reis e ao culto dos ancestrais, a Vila Isabel foi palco de movimentos abolicionistas. “Esses dois territórios têm forte ligação com a cultura afro e também estão presentes na obra do Martinho – seja na música ou nos livros. A territorialidade e a ligação com a comunidade são aspectos que caracterizam a maneira de ser e de viver dos afrodescendentes. Martinho não foge disso. Não se trata só de Duas Barras, onde ele acabou comprando a Fazenda do Cedro Grande, sua cidade natal e chama de ‘seu off-Rio’, e da Vila Isabel, mas de outros lugares que mantêm conexões fortes, como a própria África. Ele é um homem universal, sem perder sua identidade”, destaca a pesquisadora.
O compositor e escritor jamais deixou de reverenciar o seu entorno, além dos laços com a família e os amigos. Sempre se preocupou com a preservação da memória dos mais velhos. Tudo o que ocorria à sua volta o inspirava, até mesmo a primeira menstruação de Juliana, uma de suas filhas. “O samba Salgueiro na avenida, em que ele usa o nome da escola que tem o vermelho como cor predominante, nasceu dessa curiosa história. Também o inspiravam conceitos básicos da cultura negra como o axé (energia da vida), a relação com os familiares, o afeto de maneira geral. Temos no Martinho da Vila um elemento que mantém a nossa identidade negro-africana na diáspora. Ele não se nega a receber influências da cultura judaico-cristã, mas tem noção muito clara da importância do negro na vida cultural e econômica do país”, destaca a autora.
PESQUISA O livro levou três décadas para ficar pronto. A intenção de Helena era lançá-lo quando Martinho completasse 70 anos. Calhou de a obra ser concluída em 2018, quando o compositor se tornou octogenário. Helena Theodoro lamenta as dificuldades enfrentadas no Brasil por tudo o que é ligado à cultura negra – sobretudo na academia. Mesmo no caso de Martinho da Vila, ídolo popular.
“Em nosso país, o negro ainda é visto como entertainer ou jogador de futebol. Mas Martinho é um escritor, um acadêmico, uma figura que pensa o Brasil”, destaca a pesquisadora. Apesar de o Brasil ter a segunda maior população negra do mundo (só perde para a Nigéria), afro-descendentes são tratados como gente de segunda categoria, critica Helena.
“Melhoramos bastante, mas não basta. Você não pode imaginar o preconceito que sofri no meio acadêmico por ser mulher e negra, mesmo sendo professora com pós-doutorado. É como se só com o olhar falassem: O que você está fazendo aqui?”, lamenta.
Esse também é o sentimento de Martinho da Vila. “Segundo ele, para poder entender o preconceito com relação à negritude, você tem que ser negro. É como um desastre de carro: só quem está ali dentro sabe o que está sofrendo. De fora, a gente só imagina. No Brasil, o negro está sempre dentro do desastre”, desabafa Helena Theodoro.
CONSCIÊNCIA A ideia para o título Reflexos no espelho veio da necessidade de ressaltar a visão do negro consciente de si mesmo e de seu lugar no mundo. “Martinho da Vila é um ponto de referência para a reflexão sobre a vida brasileira. Ele se enxerga no espelho como um homem negro. É um brasileiro orgulhoso de si mesmo por refletir a cultura de seus ancestrais”, explica Helena.
De acordo com autora, o livro surge num momento de grande relevância, pois a trajetória da comunidade negra brasileira ainda não foi abordada integralmente. Muito do que foi publicado no país ainda está relacionado à escravidão. “Precisamos contar histórias ainda não contadas. Martinho da Vila – Reflexos no espelho não é simplesmente uma biografia. Busquei um olhar sobre o movimento negro e, nesse sentido, oferecer um panorama do Brasil dos anos 1960 a 2000”, observa.
“Martinho da Vila é um intelectual orgânico, tem impressionante percepção do mundo. Ele é uma pessoa sensível, inteligente e doce. Um brasileiro consciente de suas possibilidades culturais como afrodescendente e como ser humano universal”, conclui.
"Martinho da Vila é um ponto de referência para a reflexão a vida brasileira”
Helena Theodoro,pesquisadora e escritora
Helena Theodoro,pesquisadora e escritora
MARTINHO DA VILA – REFLEXOS NO ESPELHO
De Helena Theodoro
Pallas Editora
240 páginas
R$ 58
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Do samba à academia
Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila, completou 80 anos em 12 fevereiro de 2018. No carnaval passado, o cantor, compositor e escritor foi homenageado pela escola de samba paulista Unidos do Peruche e pela tradicional Banda de Ipanema, no Rio de Janeiro. Desfilou pela dona de seu coração, a carioca Vila Isabel, justamente no dia de seu aniversário.
Filho dos lavradores Josué Ferreira e Tereza de Jesus Ferreira, que trabalhavam na Fazenda do Cedro Grande, em Duas Barras (RJ), ele se mudou com a família para o Rio de Janeiro com apenas 4 anos. Em 1968, chamou a atenção no 4º Festival de MPB da TV Record ao lançar Casa de bamba, seu primeiro sucesso, que se tornou clássico do samba. Em 1969, gravou o LP Martinho da Vila, recordista em vendagem naquele ano.
Martinho ocupa a cadeira número 6 da Academia Carioca de Letras. Tem oito filhos de três casamentos: Martinho Antônio, Analimar, a cantora Mart’nália, Juliana, Tunico, a pianista Maira Freitas, Preto e Alegria. Atualmente, é casado com Cleo Ferreira.