“Ouço todos os corações batendo”, cantou Gilberto Gil, 76 anos, em certo momento do show OK OK OK. Não era metáfora – o verso de Ouço bem pode resumir o clima da estreia da turnê nacional do cantor e compositor baiano, sábado (24) à noite, no Palácio das Artes, em BH. Com casa lotada, Gil apostou – e acertou – em priorizar o repertório do novo disco, lançado em agosto. Das 20 músicas, 11 eram inéditas. O público ouviu atentamente, aplaudiu e curtiu o espetáculo intimista, delicado e potente.
Não houve clima de comício. Durante o show, ouviram-se um ou dois solitários gritos de “Lula Livre”. Depois das luzes acesas, à saída do Grande Teatro, as palavras de ordem ecoaram mais fortemente.
As canções de Gil falaram por si. A primeira – OK OK OK – já é o 'manifesto' do artista, ex-ministro da Cultura e ativista, sempre cobrado a dar opiniões. “Palavras dizem sim/ Os fatos dizem não”, cantou ele. Perto do final, veio Marginália. O clássico da Tropicália, com poema de Torquato Neto, parece até ter sido lançado ontem. 'Eu brasileiro confesso/ Minha culpa meu pecado', mandou Gil. 'Minha terra tem palmeiras/ Onde sopra o vento forte/ Da fome, do medo e muito/ Principalmente da morte'. Cá pra nós, precisa de discurso?
Com voz visivelmente cansada, mas assertiva, Gil celebrou amor, vida e – por que não – a morte, ou, como prefere, 'o amanhã que tu não sabes/ e eu também não sei'. OK OK OK, contou Gil, surgiu no período 'relativamente difícil' das internações hospitalares e da insuficiência renal e cardíaca que enfrentou.
Dessa jornada surgiu o samba alto-astral para a doutora Roberta Saretta, inspirado no exame em que lhe tiraram quatro pedacinhos do coração. E canções para netos, bisnetos e amigos – Sereno, Sol de Maria, Lia e Deia, Afogamento. O velho baiano arrasou (como sempre) ao violão em Yamandu, tributo ao genial instrumentista gaúcho. Mas... Faltou a linda Jacintho (“Já sinto aqui na barriga/ Meu peito/ Alguns sinais de defeito”), composta por ele um amigo centenário. É até pecado esta ficar fora do show.
PRECE Neste momento de intolerância nacional, Gil – sozinho ao violão – é um bálsamo, sobretudo quando a inspiradíssima Prece antecede o mantra Se eu quiser falar com Deus. E continua mandando – muito – bem na guitarra. Estão no show o Gil roqueiro e o “reggaeiro”. Ouço, ao vivo, é pedrada. O momento 'cantar junto' teve a baianíssima Avisa lá e surpreendente releitura de Pro dia nascer feliz, hino de Cazuza, e a alto-astral Extra. A novata Na real é outra pedrada.
O mestre brilha, assim como a banda formada pelo filho dele, Bem Gil (violão e guitarra), o mentor do disco e do show. A moçada é craque: Bruno di Lullo (baixo), José Gil (o caçula, bateria e percussão), Domenico Lancellotti (bateria e percussão), Thiagô Queiroz (sopros), Diogo Gomes (sopros) e Danilo Andrade (teclados). Nara Gil, a primogênita do clã, canta, dança e tem um alto-astral...
INVASÃO O momento fofo da estreia coube a Antônia Joaninha Gonçalves Ferreira, de 69 anos. Mãe de quatro filhos, avó de seis netos e bisavó de três crianças, ela pulou no palco para abraçar Gil. Fez o gesto de reverência a ele e à banda, contou ter vindo de Rondônia para vê-lo. Ganhou o carinho e o agradecimento do ídolo, que ainda mandou aquele abraço para o pessoal de Ariquemes, cidade onde ela mora. O público adorou, aplaudiu. Parecia se sentir representado por aquela ousada fã.
Eleitora do 'professor Haddad' ('e lá vou trair o coleguinha?'), afirmou que o baiano foi ótimo ministro e desaprova o fim da pasta da Cultura. Pra não deixar dúvidas, pediu para a repórter registrar: "Meu rei é o Roberto Carlos, mas o Gil é a lenda ambulante da poesia."
Gil canta Cazuza em Pro dia nascer feliz