Qualquer pesquisa sobre os primórdios do rock produzido em Minas Gerais nos leva, invariavelmente, ao Clube da Esquina. Pois há uma página anterior, pouco contada, dessa história.
“Na Itacolomi, surge um novo e trepidante programa local: Brasa 4, reunindo os melhores conjuntos e cantores de Minas do gênero iê iê iê”, anunciou o Estado de Minas em 24 de dezembro de 1966. Pois foi na véspera do Natal, uma tarde de sábado, que teve início o programa que até meados de 1972 (ano do lançamento do álbum Clube da Esquina) catalisou a produção de música jovem mineira.
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Nascido como versão mineira do programa Jovem Guarda (1965-1968) – que lançou Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa –, Brasa 4 era produzido nos mesmos moldes. Um elenco de bandas e cantores se apresentava semanalmente.
Produzida por Paulo Afonso Ladeira, a atração nasceu como reflexo do programa da TV Record e também como consequência da demanda que havia em Belo Horizonte, onde programas de rádio já apresentavam jovens talentos do iê iê iê.
Pouco depois de sua criação, o Brasa 4 foi assumido pelo radialista Dirceu Pereira, que se tornou o apresentador oficial da atração. “Dirceu aglutinou vários artistas jovens da época, criando um espaço para que a juventude pudesse se expressar de forma tranquila e positiva”, comenta Dalva Righetti, de 66 anos. Dalvinha era uma das cantoras de maior sucesso do programa. Adolescente, foi descoberta quando atuava como manequim.
“Minas foi o único estado que teve um programa nos moldes da Jovem Guarda. Levavam a fita para exibi-lo em outras cidades, São Paulo, Rio, Bahia e Brasília”, conta Wagner Carone, de 72, um dos cantores do elenco fixo da atração. “E Curitiba também”, completa Carlos Alberto Viglioni, de 71, o Carlinhos Batera, integrante do quarteto instrumental Os Intrépidos, banda fixa do programa até 1969. O contrabaixista Ezequiel Lima também fazia parte dele.
O programa da Itacolomi foi palco também para os cantores Amir Francisco, Roberta Lombardi, Marisa Rossi e Redig, além das bandas Wood Faces, Jungle Cats, Rockfingers, The Fingstones, Os Agitadores (a partir de 1969, o grupo fixo da atração), The Keppers, Os Turbulentos (Flávio Venturini era o tecladista) e Analfabitles. A maioria dos integrantes nem chegava aos 20 anos.
PADRE Até um religioso fez história no programa: o padre Ernani. Matéria do EM destacava: “Ele canta em todas as tardes de sábado para os telespectadores da TV Itacolomi misturado com outros jovens, entre guitarras e cabeleiras”. Na entrevista, o padre afirmou que até o Brasa 4, a “música em Minas estava naquele estágio do nada.”
Como a Itacolomi alcançava todo o estado, os integrantes do programa viajavam para festas e shows em várias cidades. “Eu não pagava conta em restaurante”, lembra Dalva. “Fomos cantar no estádio do Valério, em Itabira, e invadiram o vestiário da Dalvinha e o meu, pegando a gente nu”, recorda Carone.
A boate Caverna, na Avenida Cristóvão Colombo (no lugar onde funcionou o clube de striptease Skorpius), concentrava boa parte da programação jovem – além de shows dos cantores e grupos do Brasa 4, havia desfiles de moda a cada semana. No repertório, nada muito diferente do que Jovem Guarda apresentava – na maior parte, versões de músicas italianas e americanas. Além do elenco fixo, o Brasa 4 sempre recebia convidados. Dependendo do convidado, o programa era gravado no imenso auditório do Cine Brasil. Jerry Adriani, Wilson Simonal, Ronnie Cord, Wanderley Cardoso, Antônio Marcos, Aguinaldo Rayol foram alguns deles. Menos Roberto Carlos, ídolo maior da juventude. Até porque sua participação no Jovem Guarda (que a Itacolomi exibia nas noites de sábado, pouco após o Brasa 4) foi até janeiro de 1968.
Porém, os integrantes da atração mineira tiveram sua chance ao lado do Rei. Eram os chamados “esquenta-show”, como Dalva explica. Abriram para Roberto no Minas Tênis Clube.
A repercussão do programa se refletia nas ruas. “A gente começou a quebrar tabus”, lembra Dalva. “Era grande o preconceito com a maneira como nos vestíamos”, acrescenta Carlinhos. Cabeludo que usava calça saint-tropez e justa, ele sofria. Ia para o colégio Ângelo Roncalli, na Floresta, a pé. “Os colegas ficavam me chamando de bichinha, mas as meninas gostavam.”
Dalva fez até fotonovela – ainda hoje, guarda o recorte da revista Sétimo céu, em que protagonizou uma história com Taiguara. “A Philips, hoje Universal, fechou contrato com vários artistas (do programa) só para segurá-los, para não irem para outra gravadora. Mas acabou não fazendo nada com ninguém”, comenta Carone. Um dos poucos a gravar disco foi o cantor Amir Francisco.
Brasa 4 teve apenas um registro fonográfico, o LP com 12 faixas gravado no estúdio Bemol e lançado em 1968. Dalva Righetti cantou Meu vestidinho, de Martinha; Roberta, a italiana Canzone per te (Sergio Endrigo); Amir Francisco, Você não serve pra mim (Renato Barros); Os Agitadores, You only live twice (John Barry/Leslie Bricusse), lançada um ano antes por Nancy Sinatra para a trilha do filme Com 007 só se vive duas vezes.
REI
Roberto Carlos teve duas músicas naquele disco: Como é grande o meu amor por você (gravada por Os Intrusos) e Quando (por Jamil). Mas é a última faixa do LP que mais chama a atenção, pois foge do repertório iê iê iê. Travessia, a primeira parceria de Milton Nascimento e Fernando Brant, encerra o álbum na voz de Edinho.
O programa terminou em 1972. “Foi o percurso natural da vida”, diz Dalva, que deixou a música e foi fazer faculdade. “Na verdade, o grande erro do Brasa 4 foi o Dirceu não ter colocado todo mundo para gravar”, afirma Carone. Mesmo que cada um tenha seguido seu caminho, o programa escreveu seu capítulo na história da música de Minas Gerais. Carlinhos pensa em reunir os antigos companheiros em breve. “Não quero fazer um evento do Brasa 4 no céu, quero fazer aqui”, afirma. Vai ser uma brasa, mora?