Ainda que tenha perdido o pai aos 2 anos, Ava Rocha cresceu à sombra da influência dele, o mais célebre cineasta brasileiro: Glauber Rocha (1939-1981). Quando foi fazer cinema, reiterou sua admiração pelo trabalho do pai e se aproximou da produção artística de sua mãe, a artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta Paula Gaitán. Ao se enveredar para a música, com o lançamento de seu primeiro disco, Diurno (2011), ela fez o primeiro movimento para se afastar dos pais, muito embora tenha encontrado outras barreiras para se firmar, como as comparações com Cássia Eller e Gal Costa. Apesar disso, a última tropicalista possível seguiu em frente e mostra no terceiro disco da carreira que, enfim, soube transformar as referências do singular ambiente em que cresceu para ampliar sua aptidão como compositora e ressignificar o trabalho do artista pernambucano Tunga (1952-2016) sob sua ótica feminina.
O cerne do método desenvolvido na produção de Trança, lançado no início de junho, está no título. A trama engendrada por três elementos que se complementam e formam uma quarta unidade foi usada pelo artista plástico em diversos trabalhos, como na série de instalações Trança (1981) e na performance Tranças humanas (2001). Ava apropria-se desse princípio e parte para uma narrativa musical expandida, na qual une referências de diferentes gêneros, como o rock dos anos 1960, o compasso da cuíca – algo que ela deve ao samba – e as mais diversas percussões, que localizam as músicas do outro lado do Atlântico, pela semelhança com ritmos utilizados por religiões de matriz africana.
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Complexo e longo – ao todo, tem mais de uma hora de duração –, Trança é composto por 19 faixas e reuniu em estúdio 35 músicos, que se revezaram em diferentes formações. Entre eles, Tulipa Ruiz, Kiko Dinucci, Curumin, Marcelo Callado, Iara Rennó, Dinho Almeida e Alberto Continentino. Juntos, eles personificam a ideia de que a união faz a força e formam uma espécie de etnografia da música brasileira contemporânea ao dar sua contribuição para um disco tão diverso.
O olhar feminino aparece destilado em boa parte do trabalho, como nas faixas Periférica, Lilith, Patrya e Bárbara, que se articulam com a presença das vozes poderosas das cantoras Juçara Marçal, Juliana Perdigão, Karina Buhr, Alessandra Leão, Bella e Linn da Quebrada. A personagem feminina mór, no entanto, é histórica: a francesa Joana d’Arc, queimada viva pelos aliados dos ingleses na Guerra dos 100 Anos (1337-1453). Bastante presente na cultura pop, a heroína aparece no funk cacofônico Joana Dark. Na letra da canção, a artista invoca temas como o feminismo, a bruxaria e a demonização da maconha. “As fumacinha do pecado eu tô tragando/ Cê tá curtindo? Cê tá gostando?/ Mas abre o olho que aqui sou eu quem mando”, canta ela.
Distante de qualquer rótulo, Trança se coloca em terrenos ainda não explorados pela cantora nos dois trabalhos anteriores – Diurno e Ava Patrya Yndia Yracema (2015) – e representa uma evolução bem-vinda à musicalidade da artista. Ava chega ao décimo ano de carreira afastando-se cada vez mais das sombras de seus pais e entrega, em Trança, a corporização de um espaço imaterial em que ela e seus parceiros puderam realizar uma residência artística insólita e extremamente produtiva, cujo produto final é um clássico instantâneo.
Abaixo, confira o single Joana Dark:
TRANÇA
De Ava Rocha
Natural Musical e Selo Circus
R$ 30 (lançamento físico previsto para 25 de julho)
Disponível nas plataformas digitais