A viola revela parte significativa da cultura das Gerais. Em 14 de junho, o Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep) fez o registro dos saberes, linguagens e expressões musicais da viola em Minas Gerais como patrimônio cultural imaterial. O processo compreendeu levantamento tanto de violeiros como luthiers, profissionais que se dedicam à fabricação do instrumento em todo estado.
Ao olhar para esse conjunto, é possível perceber dois movimentos: de preservação de um jeito mineiro de tocar e, ao mesmo tempo, a abertura de diálogo com outras linguagens e o renovado interesse de novas gerações pelo instrumento.
A diretora de proteção e memória do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha), Françoise Jean, diz, que a plataforma de cadastro dos violeiros foi construída colaborativamente. Se o primeiro momento foi o levantamento, o segundo prevê ações organizativas, como a realização de fóruns regionais.
“Quando fazemos o registro como patrimônio imaterial, o poder público assume um compromisso. Tornamo-nos colaboradores para que expressão perpetue”, diz. A plataforma ainda está aberta para receber cadastro de músicos.
A viola se tornou patrimônio imaterial por ser elemento fundante da cultura mineira. O instrumento marca os ritmos das folias de reis, congado e catira. “É elemento estruturante na musicalidade das expressões culturais mineiras. Dita o rito celebrações religiosas e leigas”, define Françoise.
A ação do poder público coincide com momento de efervescência da cena em Belo Horizonte. Um exemplo é o projeto Viola de Feira, realizado no Centro Cultural Padre Eustáquio. Com início em 28 de fevereiro, encerra-se neste mês com o desejo dos organizadores de captar recursos para nova edição.
Com trajetória dedicada à viola, tendo sete CDs autorais, Pereira da Viola abriu a série de shows no espaço, que recebeu ainda Nádia Campos, Gustavo Guimarães, Quincas da Viola e Dito Rodrigues.
A prova de que a viola mineira não parou no tempo é o interesse que desperta em pessoas de todas as idades, inclusive jovens, caso da violeira Letícia Leal, de 33 anos. Além da juventude, a presença de Letícia mostra que a cena artística, associada majoritariamente aos homens, também é delas.
O levantamento feito pelo Iepha cadastrou 1.470 violeiros em Minas, distribuídos em 400 municípios. Desse total 132 são violeiras, o que não representa nem 10%. No entanto, Letícia destaca que tem crescido o número de praticantes, inclusive entre mulheres. “Elas têm dificuldade de se reconhecer como violeiras. A viola tem uma questão de ego muito forte”, afirma.
Autodidata, Letícia começou os estudos pela internet. “Não fiz aula. Tinha material na rede, mas em menor quantidade se compararmos com o violão.
Como tinha violão em casa, tentou fazer afinação do instrumento igual à da viola, mas viu que tinha que se dedicar ao instrumento de 10 cordas. Embora sejam da família das cordas, a viola e violão são bem distintos. As diferenças vão desde o número de cordas – o violão tem seis e a viola 10 cordas.
“São 10 cordas afinadas em dupla, ou seja, cinco ordens de cordas duplas. Além da afinação das cordas, temos posição diferente para ter o mesmo som”, define Letícia.
Depois de 10 anos, a violeira compõe e propõe releituras de choros e baiões clássicos. “Não fico só na moda de viola. Caio muito no choro.
A fusão e o diálogo com outros ritmos é prática de Fernando Sodré, que busca referências no jazz e no choro. E de Pereira da Viola, pesquisador das muitas sonoridades da viola em Minas, que estabelece pontes com ritmos indígenas e africanos.
Os artistas africanos Bonga, de Angola, e Sona Jobarteh, de Gâmbia, por exemplo, são influências para o mineiro no show Brasil bonito, que será levado ao palco n’A Autêntica, em 12 de julho.
Três perguntas para...
Pereira da Viola,
violeiro
A viola compõe a identidade mineira?
A viola que nós tocamos em Minas tem diferencial devido ao aspecto geográfico e composição histórica da identidade. Instrumento que norteou tudo, a culinária, o jeito de falar, as manifestações culturais. Ter registro de patrimônio imaterial, neste momento, traz lugar de reconhecimento não da viola só. É reconhecimento de que música que fazemos tem importância grande para identidade mineira. Também do ponto de vista organizativo está sendo muito importante. Abre-se janela para elaboração de políticas públicas para a nossa área.
O que caracteriza a viola mineira?
Do ponto de vista rítmico, há uma variedade tocada: Zé Coco do Riachão, Seu Manelin, de Urucuia, e Valdão, do Vale Mucuri. Distanciamos um pouco de outros lugares que tem o Tião Carreiro como referência. Não podemos deixar de mencionar Renato Andrade, divisor de águas da viola no Brasil. O próprio Tião Carreiro é de Minas, da região de Montes Claros. A célula rítmica do Tião vai para SP, vira referência nacional. Muitos utilizam a linguagem do Tião, principalmente as duplas caipiras. Tem a questão das folias, que sempre utilizaram a viola. É fundamental a manutenção dos mestres, são figuras importantíssimas.
Há um movimento da viola para dialogar com o público jovem? Como você vê a inserção das violeiras?
A nossa geração – estou com 56 anos – eu, Chico Lobo, Wilson Dias, Bilora, foi essa turma que trouxe para esse contexto o diálogo com pessoas mais jovens. Há muitos adolescentes querendo aprender a tocar. A presença da mulher no movimento da viola está sendo muito importante. Havia uma hegemonia, só homens tocavam. Agora que as mulheres se interessaram, o sucesso está garantido. Se você pensar, o som da viola é feminino. O instrumento traz a sutileza e a sabedoria feminina.
Amor ao som
A sonoridade do instrumento depende da qualidade do material e do cuidado e técnicas empregadas em sua construção. Em Cordisburgo, o violeiro João Evangelista da Silva é um dos que mantêm a tradição da viola viva. Além de tocar, a paixão pelo instrumento o fez se transformar em luthier. “Já tocava viola e comecei a construir viola em 2006. Sou apaixonadíssimo pela viola caipira.” Ele leva 60 dias para construir uma.
“É o tempo necessário para ela ficar gostosinha, bacaninha”, diz. Uma viola boa tem que ter sido feito de madeira boa, ferragem perfeita, cordeamento bom e acabamento impecável. Johnnynho, como é conhecido, revela que os violeiros da região gostam da afinação cebolão, uma das afinações da viola caipira mais comuns no Brasil..