Em novo álbum, Elza Soares faz uma enfática defesa das "maiorias" negras, LGBTs e feminina

Em 'Deus é mulher', feminino aparece como gerador de vida, voz capaz de mover estrutura

por Márcia Maria Cruz 20/05/2018 11:04
Deck Disc/Divulgação
(foto: Deck Disc/Divulgação)

Se restava alguma dúvida que Elza Soares é um orixá, no álbum Deus é mulher, a voz e interpretação não deixam espaço para essa hesitação. O recente trabalho, lançado na sexta (18), nos convoca à transcendência, mostrando a força da intérprete. Se em A mulher do fim do mundo (2015), ela mostra potência vocal e conexão com a ancestralidade, em Deus é uma mulher, inaugura novo tempo. O feminino aparece como gerador de vida, voz capaz de mover estruturas. Elza surge mais atual do que nunca e fala às novas gerações, com composições que trazem à tona a sexualidade feminina, o desejo, o direito à voz e o amor plural.

Elza manteve o núcleo de produção que esteve à frente do A mulher do fim do mundo. Guilherme Kastrup segue na produção, com coprodução de Rômulo Fróes. Nas composições, alguns nomes se repetem, como Alice Coutinho. A banda também se mantém. O trabalho ganha com novas parcerias: Tulipa Ruiz, Mariá Portugal e Pedro Luís. A cantora ressalta que as 11 faixas, inéditas, foram escritas para ela.

Se no trabalho que deu a ela o Grammy Latino de melhor álbum de música popular brasileira, ela sugere o encerramento de um ciclo, nesse, aponta para o futuro, para a criação, o que é próprio das divindades femininas. A quase um mês do aniversário, em 23 de junho, Elza prefere não contar o tempo. Olha para frente e diz: “O tempo é agora”.

DNA Há uma continuidade entre os dois álbuns. Embora apostem em estéticas completamente diferentes, guardam o DNA de Elza: o jeito de falar de si sem ser individualista. Elza personifica o termo africano ubuntu, que significa “sou o que sou, porque somos”. Ela se coloca nesse lugar de empatia. Sabe do poder que detém para amplificar o grito de grupos minorizados.

A faixa Exú nas escolas é um grito pela diversidade cultural, um pedido de respeito às religiões de matriz africana. A faixa conta com a participação do rapper paulistano Edgard. “Exú nas escolas não é Xou da Xuxa”, ironiza na letra. É uma retomada da “alcunha roubada do deus iorubano”. Em Banho, composição de Tulipa Ruiz, convoca para experiências e sensações trazidas pela água. Também faz referência direta à sexualidade feminina. “Eu não obedeço, porque sou molhada”.

Em Língua solta, conclama a todas o direito de falar. Convida a se rebelar, por meio da palavra, contra “templos e os leões”. Diz que não se deve se calar mesmo diante do “horror, da cara feia e da noite escura”.

BERIMBAU Na faixa Hienas na TV, destaque para o som do berimbau, instrumento tocado pelo mestre Dalua. Em Credo, ela brinca com os sentidos que cabem ao termo, seja no sentido de crença ou como interjeição para se esquivar do dogmatismo que cega. “Meu amor é um deus que não cabe na religião”, canta. Se Simone de Beauvoir alertava que o feminino não estava no biológico, mas no tomar de consciência desse lugar construído socialmente, a canção Dentro de cada um diz que a mulher pode sair de qualquer um – homens e mulheres. “A mulher de cada um não quer silêncio”.

A faixa que encerra o disco é de Pedro Luís. Em Deus há de ser, Elza canta: “Deus é mãe de todas as ciências femininas”. Da poesia, da rima.

ENTREVISTA

Elza Soares
cantora

Elza Soares está em momento solar. Assim ela define o novo trabalho, o álbum Deus é mulher. O aniversário está próximo, mas ela prefere não falar sobre idade. “Meu tempo é agora”, sentencia. Diz ser feminina desde sempre. Ressalta o quanto canta para mulheres, negros e gays. Faz questão de destacar a matéria “Um novo quilombo: Segunda Preta afirma espaço da arte negra em BH”, do especial 130 anos de abolição do EM, publicada em 15 de maio. A reportagem faz referência ao Segunda Preta, projeto de dramaturgia que abre espaço para atores e atrizes negros. “Meninas pretas e atrizes negras. lutem e busquem o seu palco. Gritem mesmo. Nós somos maravilhosas. Nos respeitem”, diz.

Qual é a relação deste trabalho com o anterior, A mulher do fim do mundo. Deus é mulher é a dimensão da criação? O feminino como força, denúncia e reação?
Ambos têm a mesma força, o mesmo rigor. A mulher do fim do mundo é dark, fechado. Muito bonito. Mas queríamos, para este trabalho, clareza. Deus é mulher é iluminado, é solar, feliz, tem boca aberta. Fala da liberdade da mulher: “quero dar para você”, “quero comer você”. A mulher hoje tem liberdade de dizer o que quer. Às vezes, escolhe mal, tem dedo ruim naquele momento. Mas foi ela quem escolheu.

Elza, você é referência para meninas, mulheres negras de todas as idades, como a filósofa Djamila Ribeiro. Como é ocupar esse lugar no Brasil de 2018?
É muito prazeroso. Poder falar de mim, minha pele, minha carne, minha cor. Eu vi reportagem de vocês que mostrava atrizes negras querendo ocupar lugar no palco. Elas estão pedindo espaço. Para mostrar o seu lugar, o trabalho delas. Tivemos avanços, mas ainda tem muito o que trabalhar. A gente não vai se acomodar. Temos que trabalhar mais. Redobrar a ação. Temos que nos conscientizar do que está acontecendo. Mas os caminhos estão abertos, estrada livre. E vamos!

Qual é a concepção que norteia o álbum?
Foi feito de uma busca. Queria sair desse lugar do A mulher do fim do mundo. Precisava de uma clareza. sorriso, sol e luz. Mas sem fugir da ideologia: falar da negritude, do mundo gay, das mulheres. Exaltar essas maiorias.

Nas 11 composições, você tem parceria com Tulipa Ruiz, Mariá Portugal, Pedro Luís...
Fui convidada por eles. Fizeram as canções para que eu gravasse. Achei tudo muito bonito. Tulipa e Mariá são maravilhosas. Temos muitas mulheres neste trabalho.

Em Clareza, você fala da canção. Qual é o lugar da canção na música brasileira, na atualidade? “A canção morreu”?
Temos que buscar tanto... Não ouvimos mais canções lindas. Onde elas estão? Um grande país é feito de grandes músicas. Saudade de Caetano, Gil, Chico, Jorge Ben Jor. Dessa turma toda. Trio Mocotó. O Brasil está carente. [As novas gerações] estou esperando que venham.

Você dá voz às mulheres, aos negros, aos LGBTs. Como você observa o Brasil de hoje para essas maiorias?
“Meu país é meu lugar de fala”. Estamos vivendo um momento incerto. Já passei por momentos assim. Na ditadura, tive que fugir do país, morar na Itália. Mas, agora, não quero fugir. Quero ver o Brasil se reerguer com dignidade. Temos um povo que sofre, grita, é excluído. Eu sou o povo.

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DEUS É MULHER

• Gravadora Deck Disc
• 11 faixas
• Disponível nas plataformas digitais

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