“A minha história é talvez/ É talvez igual a tua, jovem que desceu do Norte/ Que no Sul viveu na rua”. A letra de Fotografia 3x4 é uma das que refletem a própria história de Belchior, que nasceu em Sobral, no Ceará, em 1946, deixou a pequena cidade, rodou o mundo, e morreu, aos 70 anos, em 30 de abril do ano passado em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul — data que na segunda-feira completa um ano.
Antes de morrer, Belchior se tornou uma figura quase mítica. Após fazer carreira nos anos 1970 emplacando sucessos como Mucuripe, Como nossos pais e Na hora do almoço, passou a se dedicar às artes plásticas: abriu um ateliê e chegou a fazer uma exposição, Autorretrato, em 1999. Dez anos depois, saiu de cena e tomou destino incerto. Ao lado da então esposa Edna Prometheu, deixou tudo para trás: casa, carros em estacionamentos e o ateliê.
O que ficou daquela época e ainda fica, mesmo após a morte do cantor, é o legado musical deixado por ele. Isso pode ser revisto no box Tudo outra vez, lançado neste ano com curadoria do jornalista, pesquisador e produtor musical Renato Vieira. O material reúne seis discos de Belchior gravados entre 1974 e 1982, com 68 músicas. São eles: Belchior (1974), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978), Belchior ou era uma vez um homem e seu tempo (1979), Objeto direto (1980) e Paraíso (1982). “Esse projeto existe desde que Belchior estava vivo. Eu já tinha feito uma caixa em 2016 com os discos dele da Universal Musical, Três tons de Belchior, inclusive, com Alucinação. Achei natural que eu resgatasse esse período dele na Warner, que foi uma época de grande sucesso popular, quando ele emplacou muitos hits”, revela Vieira.
Os seis discos estavam fora do catálogo fonográfico há muitos anos. “Essa é uma forma de trazer para a nova geração esses discos”, completa Renato Vieira. Além dos clássicos, Tudo outra vez tem uma versão inédita de Como se fosse pecado, que ficou guardada por 40 anos. “Essa versão foi censurada na época. Acabamos localizando essa versão, que tinha sido cogitada para entrar em Coração selvagem (1977). Eu sabia da história, mas não tinha certeza se tinha sido efetivamente gravada. Mas ela foi e acabou não entrando no disco”, conta.
O box está disponível nas plataformas digitais e, na versão física, há um material extenso que conta a história de cada um dos discos. “Eu visitei acervos de jornais e revistas para ver o que o próprio Belchior tinha falado na época, até porque as músicas dele são muito conceituais. Eu consegui reunir isso, que é um panorama de tudo que Belchior pensou e falou naqueles primeiros anos”, explica o produtor.
O encantamento de Renato Vieira com Belchior veio graças ao pai, que colocava na vitrola os LPs do artista. Apesar da extensa pesquisa em torno do cantor, Vieira não teve a chance de conhecê-lo pessoalmente. “Gostaria muito de ter tido a oportunidade de conversar com ele. O Belchior era um artista muito interessante, porque ele sempre foi muito inconformado. E acho que, justamente por causa desse inconformismo, ele não deixou filhotes (na música).
História nas telas
Desde 2014, o cineasta cearense Nirton Venâncio se dedica ao filme Música do Ceará — Lado A lado B, em que Belchior é uma das figuras de destaque. No ano passado, o diretor chegou a deixar o projeto de lado, mas retomou o fôlego e voltou neste ano. O objetivo é concluir o material até o fim deste ano. A previsão é de editar o filme em junho.
Belchior é um dos artistas importantes do longa-metragem. Isso porque é uma história do músico que abrirá o projeto. Segundo Venâncio, o filme reconstituirá um episódio dos dois de 1977, quando ele ganhou das mãos do artista, durante um programa de rádio em Fortaleza, o LP e a fita cassete de Coração selvagem. “A partir dessa abertura, volto para meados dos anos 1960, quando começou a nascer na capital cearense o movimento do pessoal do Ceará, onde se destacaram nacionalmente Fagner, Ednardo, Belchior, Amelinha, Fausto Nilo”, adianta.
O filme segue até 2014, com entrevista de gerações influenciadas por esses artistas, e conta também com alguns depoimentos de Belchior, que ele define como “alguma coisa de forma precária, mas de suma importância”. Por ter tido contado com Belchior e a música dele, Nirton o classifica como um dos mais autênticos compositores da música brasileira. “Poesia e filosofia são as melhores definições para suas composições. Ele falou do passado sem ser saudosista. Questionou o presente sem ser panfletário. Anunciou o futuro como um visionário. Sua vida pessoal está em sua obra como matéria-prima de criatividade, de maneira que todos nós possamos nos espelhar e refletir”, analisa o cineasta, que decreta: “Há um ano que Belchior não morreu”.
Influenciando gerações
Na última quinta-feira, Belchior foi celebrado em dois eventos em Brasília. No Feitiço Mineiro, a cantora Alessandra Terribili fez um show em celebração ao disco Alucinação, de 1976, que tem sucessos como A divina comédia humana. Ela escuta Belchior desde pequena e, antes mesmo de ele morrer, já fazia esse tributo. “Ele tinha uma forma única de compor e tocar as músicas. É uma obra fácil de reconhecer. Ele tinha um olhar ácido sobre as coisas”, classifica.
No palco do Teatro dos Bancários, foi o conterrâneo Marcos Lessa que celebrou o artista por meio do disco Coração selvagem. Para Lessa, Belchior era um artista ao qual ele podia se espelhar. “Belchior sempre foi uma referência para mim, e acho que para muitos músicos no Ceará também”, destaca.
Um anos após a morte de Belchior, ele ganhará mais uma celebração na cidade no show Um ano sem Belchior — Tributo ao tempo em que você sonhava. A apresentação será feita pelo cantor Bruno Z, ao lado dos músicos Roberto Betão (baixo) e Marcos (bateria), inspirado na música A palo seco, em que Belchior canta em trecho a frase: “Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos lhe direi/ Amigo eu me desesperava/ Sei que assim falando penas/ Que esse desespero é moda em 73”. O show está marcado para as 22h, no Bar do Kareka, em Taguatinga Norte.
*Estagiário sob supervisão de Vinicius Nader