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Crítica: David Byrne, o maestro dos palcos

O princípio está na cabeça. David Byrne foi decisivo na definição sonora e estética dos anos 1980 com o show Stop making sense, quando subia ao palco com violão e som portátil para cantar Psycho Killer antes da entrada dos outros integrantes dos Talking Heads. Três décadas depois, novamente de terno cinza, sua aparição inicial é ainda mais despojada. Descalço, ele senta-se à mesa onde o aguarda um cérebro de plástico, que exibe à plateia como se fosse o crânio de Hamlet.
 
De forma pausada e teatral, o cantor interpreta Here, faixa do disco que batiza a turnê American utopia. “Aqui estão muitos sons para seu cérebro decifrar/ Eis o som, está organizado para que as coisas façam sentido.” Não há dilemas existenciais no conceito da apresentação. Apenas no público, ainda intrigado. É ou não é um show tradicional? Quase duas horas depois de uma sucessão incessante de sinapses e sorrisos, o público que assistiu a um dos melhores espetáculos do ano sabe a resposta: rótulos não fazem sentido.
 
A entrada de impacto dá uma ideia do que vem pela frente. “Ao ver aquela abertura fui levado a pensar: ali está o cérebro, o objeto mais sofisticado de toda a história da vida.
Ele está agindo como um mago”, refletiu Tom Zé, em texto que escreveu após o show que viu no sábado, no festival Lollapalooza, em São Paulo.
 
Lançado no exterior por Byrne, Tom Zé se disse tão impressionado que decretou: “A partir dali minha vida mudou”. Outras reações foram igualmente entusiasmadas antes de a turnê chegar a Belo Horizonte, última apresentação no Brasil (depois de visitar Inhotim, os músicos seguem para o México, depois tocam nos EUA e no verão europeu). “Um clássico instantâneo”, afirmou o diretor teatral e cineasta Felipe Hirsch, que viu no Rio de Janeiro.
 
“Parti de uma ideia. E se o palco estivesse completamente vazio?”, revelou David Byrne, em conversa antes da apresentação no Km de Vantagens Hall. “Não queria fios, cabos nem amplificadores no palco. É tudo wireless”. Um dos três percussionistas brasileiros da banda, o catarinense Mauro Refosco (Forró in the Dark, Atoms for Peace e que também toca com Red Hot Chili Peppers) lembrou os ensaios intensivos de um mês antes da estreia.
 
Pela precisão dos movimentos e pela dinâmica alcançada, parece que os ensaios levaram mais tempo.
Depois de Byrne oferecer o cérebro ao público, os instrumentistas vão entrando e ocupando o palco nu. Em movimentos sincronizados, eles seguem e se descolam do líder. Não param quietos enquanto tocam. Às vezes agem como componentes de uma escola de samba que tem como diretor de harmonia o mais nova-iorquino dos escoceses, cabelos brancos e lisos como os de Andy Warhol, um senhor artista de 65 anos, o criador do Grêmio Recreativo Unidos de David Byrne.
 
“Eu danço assim”, ensina o cantor, em uma das músicas novas. Mas nada é impositivo no show. Seus companheiros de palco parecem menos uma banda de apoio e mais uma trupe, formada por pessoas de diversos gêneros, raças, idades e nacionalidades (e a diversidade é ressaltada por mais uma ideia feliz, o figurino idêntico e neutro).
 
Os onze músicos, excelentes, parecem se divertir tanto quanto o inventor da brincadeira. Chegam a fazer uma roda para dançar de mãos dadas. Todo mundo é bem-vindo na casa de Byrne, e ele não se sente só, como atesta no mais recente single.
Por quase duas horas, mergulhamos na utopia de um cantor e compositor que continua a ter uma festa na mente, como descreveu em Memories can’t wait (1979), uma das canções mais marcantes dos Talking Heads. Ele nos convida a entrar para festejar a vida e o amor. “Todo dia é um milagre”, David canta. E, de novo, sorri.
 
O espólio da banda nova-iorquina desfeita em 1991 surge no repertório de forma calculada, mas nada previsível. Músicas como I Zimbra, Burning down the house, The great curve e Blind se encaixam na proposta do espetáculo. Once in a lifetime parece escrita para a turnê. Se a ausência de Psycho killer é plenamente justificável, talvez outras canções dos Talking Heads, como (Nothing But)Flowers, também funcionassem na utopia de Byrne.
 
Mas não dá para saber exatamente o que se passou pela cabeça do compositor ao engendrar um espetáculo que, entre outras proezas, resgata uma palavra bem desgastada: performance. Sim, o show de David Byrne tem elementos de balé, samba, marcha, parada. Tem parceria com Fatboy Slim para botar Imelda Marcos na dança, tem sons das Américas e da África. É uma mistura, mas é amálgama, não mixórdia.
É performático, sim. E isso é um elogio.
 
A dinâmica do espetáculo, com troca constante de instrumentos entre o destacado trio de percussionistas brasileiros (Refosco, Davi Vieira e Gustavo Leite), envolve o público a ponto de nem se notar que Byrne, logo ele que chegou a dirigir um longa-metragem (True Stories, de 1986), dispensou projeções em telão ou outras fontes de distração visual. O cantor e todos estão no palco pelo ritmo, pela dança e pelas letras. E que letras!
 
“Somos apenas turistas nessa vida/ Apenas turistas, mas a vista é bacana”, canta em Everybody’s coming to my house, rimada no original (“We’re only tourists in this life/ Only tourists but the view is nice”). No bis, ele volta com um bumbo e substitui o tom descontraído pela contrição. Adiciona à canção de protesto Hell you talmbout, de Janelle Monáe, os nomes de vítimas da violência brasileira, como o pedreiro Amarildo de Souza e a vereadora Marielle Franco. É o fim da utopia, é a volta à realidade, é o fim do enlevo, é o Brasil em sua estrada para lugar nenhum que volta a nos assombrar e nos envergonhar.
 
Antes disso, porém, mais uma performance com DNA brasileiro surpreende e faz sorrir. Surge no palco uma bola de futebol. Ela rola, às vezes sem muita intimidade, de pé em pé entre os músicos. Todo mundo ali sabe quem é o dono daquela bola.
Mas ele, sábio, faz questão de valorizar o jogo coletivo. Sua música é feita de tabelas. Seu show é a apoteose da arte sem muros nem fronteiras, é a vitória do time liderado por um craque. Golaço de David Byrne.

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