Desde que surgiu em 1973, no Bronx, em Nova York, o hip-hop foi um movimento de afirmação da cultura negra e latina, criando meios de expressão de uma identidade geralmente marginalizada. Com a dança, o grafite e o rap, os afrodescendentes americanos encontraram formas de se manifestar artisticamente com tamanha força e universalidade que produziram – e ainda produzem – reflexos em várias partes do mundo.
Diferentemente dos Estados Unidos, onde a música e o DJ representam o marco inicial do hip-hop, no Brasil, a cultura hip-hop teve um impulso inicial através do filme Flashdance, de Adrian Lyne, em 1983. Com a temática da dança em primeiro plano, foi ela que desencadeou por aqui o surgimento dos b-boys, cujos corpos se moviam de maneira totalmente inovadora.
A expressão musical do hip-hop, o rap, e seus registros fonográficos demoraram um pouco mais para surgir no Brasil. Há o curioso registro de Rapper’s deligh, do trio de Nova Jersey Sugarhill Gang, numa versão em português feita pelo ator, produtor cultural e apresentador de TV Luís Carlos Mielle, chamada Melô do tagarela e datada de 1980. Era, porém, uma música ainda sem relação com o hip-hop, impulsionada pela popularidade do estilo nas rádios.
Em 1988, o lançamento da coletânea Hip-hop cultura de rua demarcou o começo dos registros fonográficos do rap brasileiro e deu início a uma revolução sonora e cultural responsável por transformações estéticas, sociais e políticas no país. De cara, colocou figuras historicamente excluídas como protagonistas, escancarando um Brasil cuja realidade jamais havia sido descrita por nenhum outro estilo, seja o samba dos morros ou a MPB mais politicamente combativa.
O rap brasileiro é, sem duvida, um divisor de águas, seja pelas inovações musicais ou pela capacidade de dar voz a uma parcela periférica da população, espelhando seus personagens, sua visão de mundo sobre a realidade e se fazendo visível e atuante numa sociedade que insiste em negá-la e renegá-la ao silêncio.
O lançamento da coletânea pela gravadora Eldorado, há 30 anos, foi um marco. Produzido pelos músicos Nasi e André Jung, ambos da banda de rock Ira!, o trabalho reuniu artistas da cena de São Paulo – MC Jack, Código 13 e O Credo, entre outros. Mas foi a dupla Thaíde & DJ Hum que emplacou os primeiros sucessos do rap nacional nas rádios.
As faixas Corpo fechado (“Me atire uma pedra, que eu te atiro uma granada, se tocar em minha face sua vida está selada”) e Homens da lei (“Ó meu Deus! Quando vão notar, que dar segurança não é apavorar, agora não posso mais sair na boa, porque ela me para e me prende à toa”) já traziam em seu DNA narrativas sobre a vida nas ruas, abordando a violência policial e explicitando os conflitos e a realidade do homem negro e periférico. Embora a linguagem refletisse pouco da fala cotidiana das ruas, a exclusão e outros temas comuns à população pobre do Brasil já estavam presentes nas canções.
No mesmo ano, outra coletânea – Consciência black – vol. 1, da gravadora independente Zimbabwe Records – apresentou ao grande público a banda que se tornaria a principal referência para o rap nacional: Racionais MC’s. A faixa Pânico na Zona Sul abordava a violência sofrida pela juventude negra, pobre e favelada, sistematicamente assassinada por grupos de extermínio. “Se eu fosse citar o nome de todos que se foram, o meu tempo não daria pra falar, mas eu vou lembrar que ficou por isso mesmo e então...”, dizem os versos de Mano Brown, integrante do grupo, formado ainda por Ice Blue, Edi Rock e DJ KL Jay.
Em 1990, o primeiro LP do Racionais MC’s, Holocausto urbano, aprofundou a marca inovadora do grupo, trazendo para a música brasileira a dura realidade das favelas sem a visão idealizada da maioria dos sambas cariocas. A abordagem direta sobre a histórica cisão social do país era contundente e expressava inconformismo diante da falta de oportunidade para a juventude das periferias dos grandes centros urbanos.
Passados quase 30 anos do surgimento do Racionais MC’s, é possível constatar a importância daqueles primeiros momentos. Historicamente sem visibilidade e sem voz, a juventude marginalizada passou a ter uma referência fundamental, um discurso poderoso e capaz de criar identificação e mudar a forma como o jovem negro e pobre se enxergava. A música, então, passou a oferecer a possibilidade de transformação social e política nas periferias, um passo importante e inédito até então.
EXPANSÃO A década de 1990 trouxe uma série de trabalhos fundamentais para a compreensão do rap brasileiro, já que alguns dos discos mais influentes nasceram justamente naquele período. Antes concentrada em São Paulo, a produção começou a se expandir, com artistas de diferentes regiões do país seguindo a trilha do Racionais MC’s.
O passo seguinte de popularização do rap ocorreu em outra cidade e foi dado por um inconformado jovem de classe média, mas que não tinha vivido as principais mazelas retratadas nas letras de rap. O carioca Gabriel Contino, conhecido como Gabriel, O Pensador, despontou em 1993 com a música Tô feliz (matei o presidente), crítica direta ao então presidente Fernando Collor de Mello, que enfrentava processo de impeachment. Apesar de a música ter sido censurada, fez suficiente barulho para que o rapper fosse convidado pelo selo Chaos, divisão da Sony Music, para gravar seu primeiro álbum.
Suas letras críticas, aliadas a uma sonoridade mais próxima do pop, foram responsáveis pelo sucesso de público, essencial para que o rap alcançasse outro patamar, chegando às periferias fora do eixo Rio-São Paulo e contribuindo para que o estilo fosse apresentado a outras camadas sociais.
As músicas eram contundentes. Lavagem cerebral, por exemplo, aborda a questão racial e o preconceito (“O racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista, é o que pensa que o racismo não existe”) e Retrato de um playboy condena radicalmente o comportamento da elite carioca (“Que legal se um mendigo me pede um cigarro. É apenas um motivo pra eu tirar mais um sarro”).
Num tempo ainda marcado pelo pop rock de bandas surgidas na década anterior – Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso –, Gabriel se tornou o artista mais popular daquele período e isso, inevitavelmente, despertou o interesse das gravadoras e rádios para o potencial daquela música e, logo, abriu os olhos para outros artistas. O caminho aberto por Gabriel, O Pensador foi essencial para que o rap ganhasse mais espaço nos meios de comunicação, mesmo mantendo seu discurso de contestação.
Com letras diretas, que expunham a pobreza e a realidade das periferias, o Racionais MC’s conquistou prestígio junto aos jovens (principalmente a juventude negra do país), que se identificaram com a fala, a indignação e a crueza do discurso de Mano Brown e companhia. Em 1993, o grupo lançou Raio X do Brasil, terceiro álbum de estúdio – depois de Escolha o seu caminho, de 1992), reforçando o ponto de vista dos excluídos da história e se confirmando como verdadeiros cronistas de seu tempo.
As faixas Fim de semana no parque e Homem na estrada alcançaram os primeiros lugares entre as mais tocadas pelas FMs, num disco que não tinha a menor pretensão em soar pop. Os versos de Fim de semana no parque – “Tô cansado dessa porra, de toda essa bobagem, alcoolismo, vingança, treta, malandragem. Mãe angustiada filho problemático, famílias destruídas, fins de semana trágicos” – relatam o abismo existente entre duas realidades muito distintas do país, enquanto Homem na estrada traz a crônica da vida de um ex-presidiário e versa sobre o fracasso do sistema prisional brasileiro.
RACISMO Com a maior difusão do rap no país, outros grupos não demoraram a aparecer nas cenas de diferentes capitais, incorporando o tom de revolta e dando voz aos excluídos. Em Brasília, o grupo Câmbio Negro, então formado pelo rapper X e pelo DJ Jamaica, “chutou a porta” com o álbum Sub-Raça (Discovery Discos), lançado em 1993, cuja faixa-título respondia ao racismo “cordial” com um alto e explícito “é a puta que pariu”. O rap em questão é até hoje um dos gritos mais viscerais contra o mito da cordialidade e a negação do racismo brasileiro e soou como um tapa na cara de uma sociedade extremamente segregada e preconceituosa.
O som encontrou eco nas vozes de jovens pretos que cresceram num contexto de falas silenciadas neste sentido. “Bem pior que fel é o amargo de engolir um sapo. Só por ser preto isso é fato”, diz a letra. Não é, de forma alguma, a imagem do preto que ri do próprio infortúnio, como mostravam os programas humorísticos da TV naquela época. O disco se espalhou e chegou a ser debatido em salas de aula e publicações específicas.
Sub-Raça é considerado um marco no cenário do rap e contribuiu para a construção do discurso direto do estilo por aqui, além de ter sido um dos primeiros a ser construído a partir de samplers da música negra brasileira, a exemplo de Os 10 mandamentos blacks, do soulman Gerson King Combo, que deu origem à música Não pare, além do flerte com o rock em Cadáver ambulante, com samplers de AC/DC. O álbum seguinte Diário de um feto (1995), causou estranhamento em parcela do público mais ligado ao hip-hop, ao incorporar uma banda na formação do rap. Por outro lado, foi exatamente o diferencial que deu ao grupo projeção ainda maior.
Um componente importante é o fato de o rap ter contribuído para que jovens negros e pobres não tivessem mais receio de dizer de onde vinham, pelo contrário, tornou-se uma identidade a ser apresentada com certo orgulho. No país dos herdeiros dos senhores de engenho, essa é uma vitória incontestável.
SOBREVIVENDO Em 1997, o rap já era compreendido por grande parte do público e cenas importantes começaram a surgir em outras cidades (veja texto ao lado). Depois de um hiato de quatro anos, o Racionais MC’s conseguiu surpreender com o incisivo Sobrevivendo no inferno. O álbum firmou o grupo como a voz legítima e definitiva das favelas brasileiras dos dias atuais, mesmo que eles próprios rejeitem esse rótulo. Se antes apresentavam um Brasil que não estava nos telejornais, o novo trabalho aprofundou seus temas sem fazer qualquer concessão.
O riff extraído de Jorge da Capadócia, de Jorge Benjor, abre o disco seguido da narração de Primo Preto (na época VJ da MTV) expondo os números da exclusão étnica no país: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial, a cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras, nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros, a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo...”. Mais uma vez, os versos de Mano Brown e companhia chocaram uma sociedade que fecha os olhos para a realidade vivida pela parcela mais pobre do país.
Mesmo sem conquistar grande espaço nos grandes meios de comunicação, o álbum alcançou a marca oficial de 500 mil cópias vendidas e o grupo venceu o prêmio de Audiência no Vídeo Music Brasil com o videoclipe de Diário de um detento. Sobrevivendo no inferno inaugurou um novo momento do rap nacional e se tornou o mais influente disco do gênero. Seu impacto extrapolou o nicho do hip-hop e conquistou status de música popular, ampliando o público do rap nacional.
Com público consolidado, outros nomes entraram em cena. No Rio de Janeiro MV Bill conquistou espaço com o álbum CDD mandando fechado, em 1998, uma referência à emblemática comunidade da Cidade de Deus. Participando de programas na TV e de grandes festivais, levou o tema da violência urbana, das drogas e da diferença de classes para uma audiência mais ampla.
Seu discurso fiel à realidade das favelas cariocas teve considerável importância para desmontar as versões reducionistas e estereotipadas dos meios de comunicação. “Eu não quero ver minha coroa cheia de preocupação. Com medo que eu seja preso confundido com ladrão. O sistema de racismo é muito eficaz. Pra eles um preto a menos é melhor que um preto a mais, CDD, Zona Oeste, Jacarepaguá, aqui o gatilho fala mais alto, pá pá pá”, diz em Traficando informação.
EXPANSÃO No início dos anos 2000, mesmo que negligenciado pelas grandes gravadoras, o rap se mantém como a música que falava mais diretamente aos jovens e não apenas aos da periferia. Um novo momento para o estilo e as marcas deixadas pelos trabalhos anteriores ainda reverberavam, como parte da identidade do que viria a seguir.
Rap é compromisso, do paulistano Sabotage, foi lançado em 2001 pelo selo Cosa Nostra, de propriedade do Racionais, e chegou com novas (e importantes) lições para o estilo. As letras falavam da periferia, da questão dos negros no país, mas Sabotage acrescentava uma certa leveza à sua forma de contar as histórias, ainda que ela permanecesse inegavelmente contundente e com liberdade criativa poucas vezes vista no contexto do rap nacional. Na faixa-título, o rapper canta: “Tumultuada está até demais a minha quebrada, tem um mano que vai levando, se criando sem falha, não deixa rastro, segue só no sapatinho, conosco é mais embaixo, bola logo esse fininho, bola logo esse fininho e vê se fuma até umas horas, sem miséria, meu verdinho.”
Mesmo com um período curto de carreira, o artista estabeleceu diálogos que permitiram que ele circulasse por outros meios, o que lhe rendeu a participação nos filmes O invasor (no qual assinou a trilha e ainda atuou ao lado do ex-Titãs Paulo Miklos) e Carandiru, além de parcerias com artistas como Bnegão, Sepultura e Charlie Brown Jr. Tudo isso até sua história ser prematuramente interrompida em 24 de janeiro de 2003, aos 29 anos. Após o bum do Sobrevivendo no inferno, Rap é compromisso representou outro momento singular do rap brasileiro. A leveza musical, a circulação do gênero por meios distintos do hip-hop e o diálogo com outros ritmos deixou claro que não há limites para os caminhos a serem trilhados pelo estilo. Sabotage, tanto pela trajetória quanto pela forma trágica e abrupta com que teve sua carreira interrompida, tornou-se possivelmente um dos maiores símbolos do rap no Brasil, ao lado do Racionais.
O cenário que se desenvolve a partir de então apresenta um leque amplo de linguagens e abre a percepção do público, da imprensa e dos próprios artistas sobre o rap. Inevitavelmente, o Racionais (que é sempre a espinha dorsal da produção brasileira, dada a relevância do grupo), ao lançar Nada como um dia após o outro dia, em 2002, retrata a possibilidade de crescimento e ascensão social do negro no Brasil, refletindo um país em processo de mudança.
Negro drama, Jesus chorou e Vida loka se tornam clássicos imediatos neste que é, possivelmente, o melhor disco da carreira do grupo até então. Negro drama, em particular, é um hino da luta de superação de negras e negros no Brasil. A canção exalta a autoestima do negro como meio de resistência, se colocando na contracorrente em um país da cultura do embranquecimento e da perversidade de suas formas de racismo. Brown sabe colocar o dedo nas feridas: “Problema com escola, eu tenho mil, mil fitas. Inacreditável, mas seu filho me imita. No meio de vocês ele é o mais esperto, ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto! Esse não é mais seu ó, subiu. Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu. Nós é isso ou aquilo. O quê? Cê não dizia? Seu filho quer ser preto, rááá, que ironia”.
MISSÃO Formado no contexto dos duelos verbais entre MCs, Emicida é hoje um dos mais populares rappers do país. Em 2009, lançou em esquema caseiro o seu álbum/mixtape Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe..., dando início a uma das mais interessantes e bem-sucedidas trajetórias do hip-hop nacional. Uma das principais faixas, Triunfo, evidencia o compromisso da música do rapper que aprendeu suas rimas ouvindo as gerações anteriores: “Não escolhi fazer rap não, na moral, o rap me escolheu porque eu aguento ser real. Como se faz necessário, tiozão. Uns rimam por ter talento, eu rimo porque eu tenho uma missão. Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido. Os esquecidos lembram de mim porque eu lembro dos esquecidos”.
Sucesso de crítica com o CD de estreia, ele lançou em 2011 o álbum Emicídio, trabalho produzido e distribuído já numa época de reconfiguração ou até mesmo falência do modelo tradicional da indústria fonográfica. Com cópias vendidas de mão em mão e a utilização das redes sociais para a divulgação e distribuição, o disco alcançou um público considerável e agradou críticos, figurando em todas as listas de melhores álbuns daquele ano.
No mesmo ano, foi lançado Nó na orelha, trabalho do MC paulistano Criolo, com produção assinada por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. O passeio por diferentes ritmos e a abertura para diálogos musicais ainda mais ousados se mantinham coerentes com a postura do rapper, que fala da periferia tal qual Racionais e Sabotage.
O contexto em que Criolo apresentou Nó na orelha era favorável para a repercussão que o álbum teve. A aceitação do rap, já com a assimilação das suas figuras de linguagem bem peculiares, era um fato, assim como a compreensão de que aquela música veio para ficar. Criolo, na época já um MC veterano, surge para o grande público neste contexto em que um artista do rap circular por segmentos diferentes, mantendo o discurso, já não causava estranhamento.
É importante frisar o quanto Sabotage abriu caminhos. Sem ele, é quase inimaginável ver rappers caminhando com tranquilidade e desenvoltura por outros segmentos e flertando com o mainstrean sem necessariamente alterar seus conteúdos para tanto. Essa é possivelmente uma das principais lições do Poeta do Canão, como ele era chamado, de que é possível caminhar por todos esses lugares, e ainda fazendo do rap um compromisso.
O atual contexto do rap no Brasil conta com uma infinidade de artistas, com inúmeras produções que imprimem suas próprias identidades. O rap nacional bebe de muitas fontes, mas, principalmente, busca referência na sua própria construção e os passos anteriores foram fundamentais para que ele se tornasse o que é hoje, para além de música, o rap representou e representa grandes transformações.
*Roger Deff é MC, integrante da banda Julgamento, jornalista e apresentador do programa Rimas e recortes, da Rádio Inconfidência.