“BH inspira seus músicos, mas não da mesma forma que Nova York inspira os dela, ou New Orleans ou Paris. Não de um jeito clichê, aquele mesmo retrato tantas vezes repetido que cria uma espécie de estilo, mesmo dentro de assombrosa variedade – o estilo ‘diversidade do mesmo’. Os escaninhos são claros, cada um dentro de sua caixinha com o label bem estampado na tampa”, afirma o compositor belo-horizontino Márcio Borges, de 71 anos.
Para o fundador do Clube da Esquina, a capital, parafraseando Millôr Fernandes, é uma cidade sem estilo. “O rapper do viaduto não é uma coisa totalmente diferente do garotão sarado que passa ouvindo Skank, sendo que o próprio gasta tempo ouvindo Lô Borges, que toca com nosso irmão Marilton, que toca com todo mundo. Ou seja, aqui os limites se invadem e se amoldam. O que Makely Ka, um artista maravilhoso, tem a ver com o Clube Esquina? Nada. E tudo.
Entre as canções inspiradas em BH compostas por ele está Ruas da cidade, parceria com o irmão, Lô Borges. A letra fala do antigo Curral del-Rei e dos índios expulsos daqui: “Guaicurus Caetés Goitacazes/ Tupinambás Aimorés/ Todos no chão (...) A parede das ruas/ Não devolveu/ Os abismos que se rolou/ Horizonte perdido/ no meio da selva/ Cresceu o arraial”.
Cowboy Para Lennon e McCartney, composta por Márcio, Lô e Fernando Brant, também remete à cidade (“Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro/ Sou vocês/ Sou do mundo/ Sou Minas Gerais”). É o caso ainda de Como vai, minha aldeia, parceria de Márcio com Tavinho Moura (“Oi minha velha aldeia/ Canto de velha sereia/ No meu tempo/ Isso era meu tesouro”).
Em Os povos, Márcio Borges e Milton Nascimento falam de uma BH provinciana (“Portão de ouro, aldeia morta, solidão/ Meu povo, meu povo/ Aldeia morta, cadeado, coração”). O clássico Clube da esquina, de Márcio, Lô e Milton, composto em Santa Tereza, virou uma espécie de cartão-postal melódico: “E no Curral del-Rei/ Janelas se abram ao negro do mundo lunar/ Mas eu não me acho perdido/ Do fundo da noite partiu minha voz”.
“Quando não estava falando das ruas da cidade, estava falando de suas serras, de sua vida de Curral del-Rei; falando dessa aldeia, suas igrejas e portões de ouro, cadeados e corações trancados; de uma gente que não quis e ainda não quer saber do que é novo, ou de um amor que me espera dentro de casa, se eu chegar à frente do sol. Mais fácil seria enumerar minhas poucas canções que não falam desta minha cidade natal”, ressalta Márcio Borges.
RUA DA BAHIA Quando se canta BH, não há como não citar Rômulo Paes, que faria 100 anos em 2018. Uma de suas canções mais conhecidas é Rua da Bahia (“Eh eh Maria/ Está na hora de ir pra Rua da Bahia”), parceria com Gervásio Horta. A marchinha, que estourou no carnaval de 1961, é considerada o hino informal da capital mineira.
“Quando a gravamos, em São Paulo, fomos a um bar bem tradicional de lá assim que saímos do estúdio. Começamos a cantá-la e, para nossa surpresa, o Adoniran Barbosa estava na mesa ao lado. Ele falou uma coisa que nunca esqueci: ‘Que bom ver vocês cantando a própria cidade.
Ao longo de seis décadas de carreira, o compositor, nascido em Teófilo Otoni, criou várias músicas para a capital que o acolheu: Adeus Lagoinha, Manhãs de Belo Horizonte, Lindo Barro Preto, Praça Sete, Mercado Central. Bela Belô, de 1997, é homenagem ao centenário de BH.
“Muita gente brinca que canto o lado B de Belo Horizonte. Na última, Funeral de amor, cito todos os cemitérios daqui. É inédita, estou à procura de algum sambista para gravá-la”, avisa Gervásio. A letra diz assim: “Você matou meu juízo/ Matando a minha paz/ Vê se para com isso/ Não fique assim/ Do jeito que a coisa vai/ Eu penso que estou indo direto pro Bonfim/ Sem consolação mas com maldade/ O nosso amor ficou na saudade/ O bosque da esperança saiu da nossa rotina/ E eu só vou renascer lá no Parque da Colina”.
Outro veterano do cancioneiro belo-horizontino é Pacífico Mascarenhas, de 82 anos. O início da carreira se deu na década de 1950, inspirado na Savassi, região onde o compositor nasceu e morou quase meio século. São dele Turma da Savassi, Praça da Savassi e Anos Savassi. “Esse lugar faz parte da minha vida e a de todo belo-horizontino. Sempre gostei de falar das coisas da minha cidade. Tenho muito orgulho”, afirma.
Responsável pelo primeiro disco independente do Brasil – Um passeio musical, de 1958 –, Pacífico prepara a retrospectiva de sua obra para comemorar os 120 anos da capital.
Márcio Borges, compositor
Século 21
Ao longo de seus 120 anos, Belo Horizonte foi perdendo o título de Cidade Jardim. As canções passaram a ter olhar mais crítico, menos idílico. O compositor Chico Amaral, de 60 anos, criou hits para o Skank que ajudaram a divulgar BH por todo o Brasil. Porém, diz que ela já não o inspira como antes, pois se rendeu a uma realidade mais dura, cruel. Ele critica o crescimento desordenado da metrópole.
“Certa vez, uma pessoa falou que eu estava sendo provinciano ao colocar nas letras coisas tão particulares, tão de BH. Falei pra ela que era justamente o contrário. Por que o Jobim pode falar do Rio, o Caetano da Bahia e a gente não pode falar do nosso lugar?”, questiona.
Várias canções de Chico Amaral com o Skank fazem referências à capital – Garota nacional, Esmola, Jackie Tequila, Tão seu, Indignação e Eu disse a ela. “A respeito dessa última, lembro-me de que, um dia, estava preso no trânsito da Avenida do Contorno e vi aquele monte de ônibus circular amarelo. Foi assim que surgiu o verso ‘Ondas amarelas/ Na Contorno cheia/ A cidade simplesmente me odeia’”, conta.
Chico elege Hotel maravilhoso, parceria com Flávio Henrique, como a sua música que resume Belo Horizonte. A letra diz: “Maravilhoso Hotel/ Esquina suja do céu/ Alguém na noite dará/ Beijos tão tristes de amor.”
“Essa canção tem, ao mesmo tempo, a dureza da realidade e algo bonito também. O mais curioso é que nunca pus os pés lá. Quando adolescente, costumava ligar para o Maravilhoso e ficava conversando com as moças. Inaugurei o telessexo”, revela, aos risos.
RAP O hip-hop já faz parte do DNA de BH. Roger Deff, de 38 anos, diz que a vida cotidiana nas ruas e nos bairros, sobretudo da periferia, é a base para o seu rap. A composição dele em que BH está mais presente é Babel, parceria com Shabê e produzida por Sergio Giffoni. Diz assim: “Cidade de diversidades contrastes/ Rostos e olhares fugazes/ Encontros e desencontros/ Metrópole, ebulição, mil faces”.
“Assim como outras metrópoles, Belo Horizonte é marcada pela diversidade. São cidades dentro da cidade, realidades diferentes e visões de mundo que se encontram ou se chocam. Tudo isso é matéria-prima para as letras. Babel teve como inspiração esses vários universos, o fato de a cidade ser muito mais plural do que nos damos conta e de como tudo isso dialoga. É uma síntese do mundo, do atual momento, porque essses encontros nem sempre são amigáveis. Lidar com a diferença é um exercício diário, mas nem sempre as pessoas conseguem fazer isso”, observa Roger.
CORAÇÃO César Menotti, de 35 anos, é paulista de Itapira. Fabiano, de 39, é paranaense de Califórnia. Porém, a dupla sertaneja se considera mineira de coração. Tanto é que os dois irmãos dedicaram uma canção à cidade que os acolheu. Lugar melhor que BH, aliás, tornou-se um hit.
“Compusemos essa música com a intenção de fazer uma declaração de amor, assim como fazemos declaração para a pessoa amada. Colocamos na letra aquilo que o nosso coração sente por BH: muito amor e gratidão”, diz Fabiano.
César não esperava que a música fosse se tornar uma espécie de hino. “O que a gente pode desejar nesses 120 anos de BH é muita paz, muito amor, respeito ao próximo e que a cidade que tanto amamos continue sendo um berço de inspiração pra tanta gente”, conclui.
Do gol ao lago do amor
BH deu “régua e compasso” para muita gente. Vander Lee, por exemplo, brincou com a rivalidade de atleticanos e cruzeirenses em Galo e Cruzeiro (“Na hora do cruzamento, ela deu impedimento/ Ou falta no goleiro/ Pra aumentar meu tormento, meu irmão/ Eu sou Galo e ela é Cruzeiro”).
O futebol da garotada na rua inspirou Fernando Brant em Dindilin ou Cláudio Manoel x Contorno (“E a cidade cresceu/ com os carros se casou/ suas ruas asfaltou/ as montanhas derrubou./Só me resta lamentar e xingar/ o juiz roubou,/ roubou, roubou”).
Gonzaguinha, que morou em BH no final da vida, prestou tributo à Pampulha em Lindo lago do amor (“Ele tomou um banho d’água fresca/ No lindo lago do amor/ Maravilhosamente clara água/ No lindo lago do amor”).
Beto Guedes, por sua vez, cantou a cidade em Tesouro da juventude (“E meu tesouro me leva/ Pelas ruas de Santa Teresa/A pedalar”). Já Paulinho Pedra Azul compôs Belo caso de amor (“Hoje acordei com a folia/ O povo cantava e Belo Horizonte marcou um novo dia/ A nossa cidade é de se apaixonar”).
Amor, bilhetes e Sacré-Coeur
A Rua Ramalhete, no Bairro da Serra, virou música. “Sem querer fui me lembrar/ De uma rua e seus ramalhetes/ O amor anotado em bilhetes/ Daquelas tardes/ No muro do Sacré-Coeur/ De uniforme/ Olhar de rapina”, diz a letra da canção de Tavito e Ney Azambuja.
O belo-horizontino Tavito, de 69 anos, comenta que várias de suas canções falam de Minas, mas admite: Rua Ramalhete é especial. “Ela foi o marco emocional de minha adolescência, um período crucial da vida dos jovens. Era apenas um quarteirão e muitas moças de nossa idade. Quando a moçada voltava do Colégio Estadual, parava ali para uma prosa, uma paquera, um violãozinho no fim de tarde. Era uma festa juvenil”, conta.