Quando um compositor avalia um disco como o melhor de sua carreira, e esse autor é suficientemente crítico e honesto sobre o próprio trabalho, fica difícil discordar. O gaúcho Vitor Ramil classifica assim seu 11º solo, Campos neutrais, disponível nas boas casas e sites do ramo um mês e pouco depois do lançamento nas plataformas digitais.
Registrado em Porto Alegre, gravado e mixado pelo superlativo engenheiro Moggie Cannazio (Bethânia, Caetano, João Gilberto, Sérgio Mendes...), o álbum soa como um voo mais arriscado, depois do conforto do duplo Foi no mês que vem (2013), irretocável balanço de carreira, indispensável numa discoteca que pretenda reunir o melhor da música popular brasileira contemporânea. Em 15 faixas, escolhidas entre cinco dezenas, o poeta de Pelotas parte de sua estética do frio e consegue uma sonoridade única, compatível com a qualidade musical e poética de suas criações. A união do percussionista argentino Santiago Vazquez com os sopros do Quinteto Porto Alegre cria diálogos criativos e estimulantes com a voz e violão do autor.
O título do disco, tirado de uma região do Rio Grande do Sul definida como fronteira neutra entre os territórios pertencentes à Espanha e Portugal por um tratado de 1777, serve como metáfora para as pontes, rios e overdrives que Ramil faz entre seu sotaque gaúcho e suas influências, referências e parcerias. Talvez o melhor exemplo da fusão de elementos seja a faixa Satolep fields forever, uma milonga com traços da beatlemania e influência oriental. Quem conhece a obra de Vitor sabe que Satolep é a forma carinhosa de se referir à cidade de Pelotas, seu QG físico e existencial. A cidade “onde as ruas querem se perder/ e as esquinas querem se encontrar” é o espaço “onde a gente pode se perder/ onde a gente pode se encontrar”.
E são muitos e estimulantes os encontros. Depois da faixa título, cheia de febres, assaltos, loucura e artimanha, ele encontra o parceiro Zeca Baleiro na emotiva Labirinto, uma canção de amor que entre “manhãs perdidas por instinto” e “trilhos em fim”, conclui: “o amor são loucos descaminhos/ sem árvores, sem pouco, sem um ninho”.
Em seguida vem Terra, versão de Tierra, do galego Xoel Lopez, um daqueles temas épicos de cantar em momentos históricos e decisivos: “sim, eu sei que o mundo seguirá girando/ quando não haja nada/ e a gente vagueia pela história/ como simples homens solitários”. Curta, cantada a capella pela sobrinha Gutcha, Se eu fosse alguém (cantiga) tem versos do português Antonio Botto tão épicos quanto a anterior, tratando de justiça e fim de pobreza. Mais explícita, Palavra desordem cita Rimbaud e incentiva o ouvinte a queimar navios, rimar com furor, romper varais e fazer a revolução.
A sempre esperada conexão latina ganha forma de homenagem em Duerme, Montevideo, praticamente um passeio pelas ruas da capital uruguaia. Da terra de Mujica para o Pará. A sinuosa Contraposto, com letra do paraense Joãozinho Gomes, serve para a dança e para pensar em estrada e poeira, com Zeca Baleiro em ágil dueto com Vitor.
Bob Dylan, que o gaúcho havia homenageado com versões de Joey, Gotta serve somebody e You’re a big girl now nos discos Tango (1987) e Tambong (2000) volta a entrar em foco com sua Sara, do disco Desire, transformada em Ana. A mudança de musa se justificativa pelas homenagens às respectivas esposas. Com Lado montaña, lado mar, com letra em espanhol, remetendo ao universo lírico e melódico de Jorge Drexler, o disco parte para o final com Olho d’água, água d’olho, parceria de Vitor e Chico César em que o paraibano dialoga de igual para igual na melodia sinuosa, que tem algo de Caetano. O CD termina com Hermenegildo, surpreendente saga de um robô salva-vidas solitário, que guarda naufrágios dentro de si e está perdido num fim de tarde sem fim à espera que alguém o encontre. Pungente fecho de um disco cheio de vigor, delicadeza e vastas emoções.
CAMPOS NEUTRAIS
De Vitor Ramil
Satolep Music
15 faixas, R$ 35
Disponível nas plataformas musicais