Chico Buarque não é de levar desaforo para casa. E foi com um bolero, irônico e provocador, que o compositor respondeu, em seu novo disco, Caravanas, as fortes críticas que tem recebido nas redes sociais, nos últimos anos, sobretudo por seu engajamento político. O álbum será lançado sexta-feira (25).
Desaforos é a sétima faixa do disco – o primeiro de inéditas de cantor, de 73 anos, em seis anos. A música é, em tese, uma resposta a uma mulher que anda falando mal pelas costas de um homem, mesmo que os dois não tenham assim tanta intimidade: “Fico admirado por incomodar-te assim/Jamais pensei que pensasses em mim”, escreve, antes de completar: “Nunca bebemos do mesmo regalo/Sou apenas um mulato que toca boleros/custo a crer que meros lero-leros de um cantor possam te dar tal dissabor.”
No texto que acompanha o lançamento do disco, revelado à imprensa nesta terça-feira, o jornalista Hugo Sukman suscita a discussão. "Escrito aparentemente para uma mulher que anda falando mal do cara por aí, o samba pode muito bem servir de reposta às pessoas que atacam e xingam as outras em redes sociais, nas ruas, nos restaurantes, em qualquer lugar e por meras diferenças ideológicas", escreve.
Nos seis anos de intervalo desde o último disco, Chico esteve no centro de discussões e não fugiu da briga. Engajou-se na campanha de Dilma Rousseff, em 2014, e foi fiel escudeiro da presidente indo, inclusive, ao Senado durante o discurso de Dilma no processo de impeachment. Chico também é acusado de receber recursos da Lei Rouanet, o que ele nega enfaticamente, mas o tem deixado ainda mais na mira de críticos na internet.
Nas últimas semanas, o nome de Chico voltou a circular nas redes sociais, criticado por machismo, por versos de Tua Cantiga, primeira faixa do disco, divulgada há alguns dias. Em seu recém-criado Instagram, o cantor respondeu "Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante", escreveu, atribuindo a frase a um diálogo ouvido em uma fila de supermercado.
INDIRETAS
Desaforo volta a levantar teses de possíveis indiretas de Chico Buarque velada sob a fineza da ironia de suas letras. Em dois momentos de intensa discussão política, letras do cantor foram interpretadas como respostas. Sob o codinome de Julinho da Adelaide, na década de 1970, Chico compôs Jorge Maravilha, que foi entendida como uma crítica ao general Ernesto Geisel, de quem a filha era grande fã de Chico.
Anos mais tarde, Chico revelou que o verso "você não gosta de mim, mas uma filha gosta" era sobre um agente do DOPS, que pediu um autógrafo a Chico para sua filha, enquanto levava o cantor para prestar depoimento. Em 1998, Injuriado, do disco As Cidades, também foi entendida como uma mensagem ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Em entrevista, Chico afastou a hipótese ao dizer que jamais chamaria FHC de "meu bem".
Em 2011, no documentário Dia Voa, Chico já havia comentado sobre sua reação diante de críticas no Internet.
DESAFOROS
Chico Buarque
Alguém me disse
Que tu não me queres
E que até proferes desaforos pro meu lado
Fico admirado por incomodar-te assim
Jamais pensei
Que pensasses em mim
Nunca bebemos
Do mesmo regato
Sou apenas um mulato que toca boleros
Custo a crer que meros lero-leros de um cantor
Possam te dar
Tal dissabor
Vejo-te a flanar pela avenida
Como dama
Florescida num viveiro
E em salões que nunca vi
Serei o primeiro a duvidar
Que em horas vagas
Os teus lábios delicados
Roguem pragas por aí
Ouço dizer, mas
Deve ser mentira
Nem a tua ira eu acredito que mereça
Ou que vires a cabeça pra exergar no breu
Um vagabundo como eu