Recife – A disputa é bastante antiga, mas ganhou ares de Fla x Flu nas festas juninas deste ano. De um lado, três baluartes do folclore nordestino: sanfona, triângulo e zabumba. Do outro, a juventude do gênero sertanejo, nascido da reinvenção da tradicional música caipira e, de longe, o mais popular do Brasil atualmente.
No fim de maio, forrozeiros pé-de-serra partiram para o ataque, reclamando da exclusão de sanfoneiros tradicionais em polos das festas juninas do Nordeste como Campina Grande (PB) e Caruaru (PE). Depois de circular pelas redes sociais, a campanha Devolva meu são-joão, encampada por Joquinha Gonzaga (sobrinho de Luiz Gonzaga) e Chambinho do Acordeon, ganhou o apoio de Elba Ramalho. A cantora paraibana chamou a atenção para a ausência de forrozeiros nas festas de peão de boiadeiro realizadas no Sul, como o megaevento de Barretos (SP). Foi o que bastou para a sertaneja Marília Mendonça retrucar a colega, defendendo a qualidade musical como uma espécie de “seleção natural” no meio artístico. O cearense Alcymar Monteiro não perdoou a dama da sofrência, classificando o trabalho de Marília como “breganejo horroroso” e “música para cachaceiros”.
A polêmica divide os pesquisadores. Para o historiador Adriano Marcena, autor do livro Dicionário da diversidade cultural pernambucana, o forró está longe de ser algo exclusivamente nordestino. Pelo contrário, faz parte do patrimônio musical do Brasil e, portanto, qualquer um pode usá-lo – e até reinventá-lo, se for o caso.
“A grande característica da cultura é ser ressignificada. Luiz Gonzaga colocou triângulo e guitarra no pé-de-serra. Na época, isso poderia ter sido visto como a quebra da antiga tradição. A cultura é dinâmica e se reinventa. Abrir espaço para o sertanejo é um caminho possível, como o seria levar o forró pé-de-serra para a festa de são-joão gaúcha”, exemplifica.
AXÉ
Marcena compara o embate à rivalidade entre frevo e axé music durante o carnaval. Acredita que, de certa forma, isso ajuda a fortalecer o forró. O pesquisador relativiza o argumento da falta de reciprocidade entre o são-joão nordestino e as festas de peão de boiadeiro. “Enquanto manifestação cultural, não é um depoimento válido. Mas, enquanto movimento de articulação política e difusão da cultura, pode vir a ser. É uma questão de mercado”, pondera.
O historiador carioca Gustavo Alonso, autor de Cowboys do asfalto: Música sertaneja e modernização brasileira, aponta um aspecto crucial dessa “guerra”: “Se você observar a questão estética, a música Ai, se eu te pego é um forró. É fácil encontrar muitos sertanejos que gravam composições de Dorgival Dantas, por exemplo. Você pode até entrar na discussão sobre se é um ‘forró de plástico’ ou não, mas não pode negar que os sertanejos dialogam com o Brasil grande. É de se perguntar, por outro lado, se o forró pé-de-serra dialoga com (a festa de peão de) Barretos”, questiona.
A questão principal é outra, aponta Alonso. A dependência de verba pública por parte de artistas de ambos os gêneros é um problema central. Isso porque o Estado deve, sim, financiar ações culturais, mas não para artistas já estabelecidos e festas já institucionalizadas, como é o caso do são-joão.
“Não tenho nada contra o show de Elba Ramalho ou de (Wesley) Safadão. Mas por que o Estado precisa pagar por eles? Caruaru tem grandes dificuldades com o transporte público, além de outras lacunas. Por que os empresários não poderiam arcar com os custos dessas apresentações?”, indaga.
À frente da ala dos defensores do são-joão tradicional está o pesquisador pernambucano Renato Phaelante, para quem o festejo deveria ter apenas sonoridades nordestinas. Na opinião dele, a música feita por Maciel Melo, Xico Bezerra e Petrúcio Amorim já representa inovação no gênero, dispensando os “Safadões”.
“Quando você chega na Argentina, só ouve tango. Pode ter 200 anos, mas tem história e tradição. Na Europa, você chega e ouve uma valsa de Strauss, que é a música popular daquela região. Precisamos curtir melhor o que é nosso, preservar e passar para outras gerações. Afinal, o são-joão do Nordeste não é igual ao de outros lugares do Brasil”, pondera.
O historiador Leonardo Dantas Silva adverte que o são-joão se descaracterizou. “Esses rapazes do Centro-Oeste chegam aqui em Pernambuco fantasiados de caubói, com chapéu do Texas, e querem mandar na festa da gente e ainda ser pagos com dinheiro público. Hoje em dia, você só tem palcos enormes a ponto de precisar de luneta para ver o cantor. E ainda tem prefeito ignorante achando que está arrasando, promovendo cultura”, afirma. E completa: “A cultura vale quando é de um povo, sem ser imposta. Basta de colonialismo!”.
Festa mutante
Na última década, a programação do são-joão em Caruaru (PE) experimentou várias mudanças. Porém, uma rápida análise das principais atrações mostra tendência ao equilíbrio. A maior fatia da grade costuma ser dedicada ao forró tradicional, representado por Petrúcio Amorim, Novinho da Paraíba, Maciel Melo, Assisão, Flávio José, Alcymar Monteiro e Elba Ramalho. Em segundo lugar, a categoria mais representativa é a do forró estilizado, universitário ou eletrônico, com as bandas Garota Safada (mais tarde substituída pelo cantor Wesley Safadão), Saia Rodada, Aviões do Forró, Limão com Mel, Mastruz com Leite, Falamansa, Cavalo de Pau e Forró da Pegação.
Até 2013, um ano depois do estouro de Ai, se eu te pego, hit de Michel Teló, o gênero sertanejo não registrou grande participação na festa junina. Desde então, houve crescimento gradual, embora tenha se limitado a, no máximo, seis atrações anuais. Outros gêneros conquistaram espaço. Este ano, por exemplo, foram contratados Margareth Menezes (axé e afropop), Bell Marques (axé) e DJ Alok (eletrônica).
ENTREVISTA/DJ Alok
'O forró é eterno'
Tiago Barbosa
Tecno house, bass e trance não têm qualquer intimidade com a tradição construída sob a harmonia da sanfona, da zabumba e do triângulo consagrada pelo legado de Luiz Gonzaga. Mas o som da aparelhagem eletrônica é estrela em Caruaru neste fim de semana, por meio de Alok Petrillo, de 25 anos, listado como o 25º DJ mais importante do mundo pela revista especializada DJ Mag. Nascido em Goiás, fábrica azeitada de cantores de sertanejo, Alok emplacou Hear me now no topo das paradas de diversos países e do serviço de audição por streaming Spotify. A projeção mundial lhe rendeu convites para participar de festivais do porte do Tomorrowland, na Bélgica, e dos brasileiros Lollapalooza e Villa Mix.
O que representa um DJ tocar no “maior são-joão do mundo”, tradição associada a forró pé-de-serra e músicas de Luiz Gonzaga?
Representa a realização de um dos meus maiores sonhos: levar a música eletrônica aos quatro cantos do país, quebrando qualquer barreira com seu alcance. Isso é sensacional, dá uma satisfação sem igual.
No Nordeste, o são-joão assiste ao confronto entre o forró e o sertanejo. Forrozeiros reclamam da invasão da música “alheia” à tradição. Você é o único DJ na programação junina. Como vê essa polêmica?
O Brasil é um berço de diversas culturas. Todos deveriam venerá-las, sem disputa de espaço. Conseguimos manter tradições respeitando um pouco da cultura de cada um. O tamanho da importância do forró não se perderia somente porque um novo estilo dividiria espaço com ele. O forró é muito forte, muito raiz... Eterno.
Quando o artista atinge um outro patamar de popularidade, é natural que seu público se amplie, tornando-se cada vez mais heterogêneo. Você tem participado de programas de auditório e se apresentado em festas onde o sertanejo e o forró são carro-chefe. Como é a interação com esse público em comparação com os fãs de música eletrônica?
É um novo patamar, com um público mais assíduo, mais expressivo e mais participativo. Não que o público de balada não seja, mas o público atual é muito mais presente.