Não é preciso conhecer a língua espanhola para saber repetir o refrão mais chiclete do momento na música pop: ''des-pa-ci-to''. A palavra em espanhol (que quer dizer, em português, lentamente) dá nome à faixa-sensação de uma parceria dos cantores porto-riquenhos Luis Fonsi e Daddy Yankee.
Lançada em janeiro deste ano, a música se tornou, no mês passado, a primeira canção em espanhol a dominar o mercado anglo-saxão desde Macarena, em 1996, e foi a porta de entrada do reggaeton em 14 países que não falam a língua espanhola, entre eles, o Brasil, os Estados Unidos e a Alemanha.
Em terras tupiniquins, o estilo estava dando os primeiros passos ao aparecer em músicas de artistas brasileiros como Anitta, Ludmilla, Luan Santana e Claudia Leitte. O Brasil, inclusive, está entre os países que ajudaram em um dos recordes alcançados por Despacito. No serviço de streaming Spotify, a música se tornou a canção latina mais popular da história na plataforma. No YouTube, o número de visualizações se aproxima da espantosa marca do bilhão.
Quando o recorde do Spotify foi estabelecido, Luis Fonsi se pronunciou: ''Estou muito feliz com essa notícia. Sinto que é um grande ganho para a música latina o fato de uma canção em língua espanhola estar na primeira posição do ranking global do Spotify. Nós continuaremos crescendo, fazendo história juntos e, acima de tudo, mostrando o melhor da nossa cultura para o mundo todo''.
Chamada de ''hino'', ''a melhor música de 2017'' e ''a melhor música latina que você mais respeita'', Despacito ganhou até um remix com participação do astro canadense Justin Bieber. O artista começa cantando em inglês até arriscar o espanhol ao lado de Fonsi e Yankee.
Despacito foi o primeiro hit de Luis Fonsi a atingir sucesso mundial, após quase 20 anos de carreira, e marca também uma nova fase na trajetória do porto-riquenho. Em seu currículo, Fonsi tem participação no Jubileu 2000, em que cantou para o papa João Paulo II, além de um Grammy Latino pela composição de uma faixa para Ednita Nazario.
Abaixo, ouça Despacito:
ISSO É REGGAETON
Confira outros nomes associados ao ritmo porto-riquenho
Maluma
Com dois shows realizados no Brasil (no Rio de Janeiro e em São Paulo), com direito a beijo na boca, no projeto Anitta convida Maluma, o colombiano é o principal nome do reggaeton atual. No país, ele ficou conhecido pela parceria com a funkeira em Sim ou não, mas possui diversas músicas de sucesso mundial, como Chantaje (dueto com Shakira), El perdedor e Sin contrato. Vale lembrar que, há alguns anos, o artista fez participação especial no DVD de Lucas Lucco na faixa Princesinha.
J Balvin
O colombiano também faz parte dos nomes atuais do reggaeton. Assim como Maluma, ele tem uma parceria com a funkeira Anitta, na faixa Ginza. J Balvin é o cantor preferido para participar de remixes de artistas famosos. Ele participou de versões de Blurred lines, de Robin Thicke, com Pharrell Williams e T.I.; The way, de Ariana Grande; Maps, com Maroon 5; e Sorry, de Justin Bieber.
cinco perguntas para...
Petra Rivera-Rideau
professora de Estudos Americanos na Universidade de Wellesley (Massachusetts) e autora de Remixing reggaetón: The cultural politics of race in Puerto Rico
Como o reggaeton evoluiu?
O reggaeton tem uma história longa e complexa. Embora muitas vezes seja associado a Porto Rico, combina influências musicais de toda a bacia do Caribe. Duas de suas maiores influências são o hip hop e o dancehall (ritmo jamaicano), que chegou pelo Panamá. Nos anos 1990, os DJs porto-riquenhos combinaram esses elementos com outras influências para criar uma música underground que circulou informalmente. O underground era música de festa, mas também dava espaço às críticas políticas e temas como pobreza, racismo e brutalidade policial. À medida que o underground se propagou, passou a ser alvo de campanhas de censura em meados dos anos 1990 que, ironicamente, ajudaram a mostrar o gênero a novos públicos. Nessa época, começou a ser conhecido como reggaeton. Em 2012, Tego Calderón lançou El abayarde, o álbum que levou o reggaeton ao mainstream de Porto Rico. Depois, em 2004, Daddy Yankee lançou Gasolina, que colocou o reggaeton no mapa da música latina.
Por quais problemas o gênero passou?
Desde o início, o reggaeton teve uma reputação de hipersexualizado, misógino e de estar relacionado às drogas e ao crime. No meu livro, repasso duas campanhas de censura. Uma foi em 1995, quando a polícia confiscou gravações por suas associações com o sexo e as drogas. A outra ocorreu em 2002, quando o Senado porto-riquenho realizou audiências para analisar o que percebia como representações hipersexualizadas das mulheres nos clipes musicais. Essas campanhas de censura foram motivadas por essas novas expressões sobre o que era ser negro e porto-riquenho. O reggaeton deu aos artistas uma oportunidade de articular suas conexões com a diáspora africana, especialmente para a juventude negra, e isto ameaçava o dogma de que não existia racismo em Porto Rico, porque mostrou que isso era falso.
As letras são muitas vezes acusadas de misóginas, como o reggaeton responde a isso?
Penso que temos que ser críticos com as representações misóginas do reggaeton. Não obstante, não acredito que devamos culpá-lo exclusivamente por isso. O gênero não opera no vazio: há problemas maiores de misoginia que devem ser abordados pelas sociedades de Porto Rico, dos Estados Unidos e da América Latina. E também pelas elites, que muitas vezes são deixadas de lado nesse tipo de discussão.
Em geral, as elites são as que mais criticam o reggaeton como um gênero ''menor''. Por que essa percepção?
O reggaeton sempre esteve ligado a comunidades vítimas de estereótipos problemáticos associados a cidadãos pobres e não brancos. Isto é o prolongamento dos antigos estereótipos e da discriminação institucionalizada que desde os tempos da escravidão existiram sobre a raça e a classe em Porto Rico e nas Américas.
Nesse contexto de marginalização, como se interpreta o sucesso de Despacito?
Despacito é complicado. Por um lado, podem vê-lo como ''sucesso'', porque mostra que o reggaeton nunca desapareceu, como seus críticos asseguravam que aconteceria. Por outro lado, Luis Fonsi não canta normalmente esse tipo de música. Seu trabalho anterior é basicamente pop e balada, dois gêneros que não foram criticados e marginalizados como o reggaeton, nem sujeitos a associações estereotipadas com as drogas, o crime e a sexualidade. Muita gente comentou que Justin Bieber se apropriou do reggaeton para o próprio proveito, mas se este é o caso, pode-se argumentar o mesmo sobre Luis Fonsi. (Leila Macor, AFP)