Há pouco mais de 10 anos, Belchior interrompeu sua profícua carreira e saiu de cena. Durante esse período, o cantor e compositor cearense foi visto pouquíssimas vezes e muito se especulou sobre o seu paradeiro (Uruguai, Rio Grande do Sul) e os motivos de seu desaparecimento. As dívidas seriam a principal causa do afastamento abrupto.
Mas, mesmo longe dos holofotes, o artista que se firmou como um dos ícones da Música Popular Brasileira nunca deixou de estar em evidência. Mais do que isso. O sumiço de Belchior criou uma aura de enigmas e mistérios em torno de sua figura, sem que a admiração por sua obra diminuísse.
Por isso, a notícia que chegou na manhã de ontem de que o autor de Apenas um rapaz latino-americano, Como nossos pais, Velha roupa colorida, entre tantas outras canções que atravessaram gerações, morrera na cidade de Santa Cruz do Sul, a 153
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A morte foi de causas naturais, segundo o delegado de Santa Cruz do Sul Luciano Menezes afirmou à Folha de S.Paulo. De acordo com o jornal paulista, Belchior vivia na cidade gaúcha havia aproximadamente dois anos e morava numa casa de dois pisos com a companheira Edna Prometeu. Edna contou à polícia, ainda segundo a Folha de S.Paulo, que na noite de sábado o cantor se queixou de frio e dor nas costas e ficou ouvindo música clássica numa sala da residência, enquanto ela foi dormir. Ao acordar na manhã de ontem, Edna o encontrou sem vida na sala em que ficara.
O diário cearense O Povo informou que a família optou por fazer dois velórios – um em Sobral e outro em Fortaleza, aberto ao público. A chegada do corpo a Sobral estava prevista para as 6h desta segunda. O governo do estado decretou luto oficial de três dias e divulgou que providenciaria o traslado do corpo.
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes se interessou pela música ainda criança e começou como cantador de feira e poeta repentista. A influência do pai, que tocava flauta e saxofone, e da mãe, que cantava em coro de igreja, só reforçou o desejo do menino de enveredar pela vida artística. Quando se mudou de Sobral para Fortaleza, na década de 1960, estudou Filosofia e Humanidades e até Medicina, mas abandonou os estudos no meio para se dedicar ao que realmente amava, a música.
Mais ou menos nessa época, Belchior passou a participar de festivais de música no Nordeste e, em 1971, experimentou uma guinada na carreira, quando se mudou para o Rio de Janeiro e venceu o Festival Universitário da Canção Popular, da TV Tupi, com a composição Na hora do almoço, cantada por Jorge Melo e Jorge Teles.
Durante o período em que viveu na Cidade Maravilhosa, teve canções gravadas por Elis Regina, como Mucuripe (parceria com Fagner) e as já citadas Velha roupa colorida e Como nossos pais. Com o aval da Pimentinha e seu talento começando a ser reconhecido, a carreira deslanchou.
GRAVADORA
Belchior gravou discos, emplacou sucessos, compôs músicas que se tornaram hinos de uma época e outras que são clássicos. Em 1983, fundou sua própria produtora e gravadora, a Paraíso Discos, e em 1997 tornou-se sócio do selo Camerati. A partir de 2005, sua vida começou a enfrentar turbulências com o divórcio, acúmulo de dívidas, além de processos judiciais relacionados a pensões alimentícias de duas filhas e um processo trabalhista.
Em 2009, a TV Globo exibiu uma reportagem no Fantástico abordando o suposto “desaparecimento” do cantor. Segundo a emissora, Belchior havia sido visto pela última vez em abril daquele ano, quando participou de um show do cantor baiano Tom Zé, em Brasília. Turistas brasileiros afirmaram ter visto o artista cearense no Uruguai, em julho do mesmo ano.
Belchior de fato foi encontrado no país vizinho e chegou a dar entrevista para o programa global. Na reportagem, ele revelou que não estava desaparecido e que preparava, além de um disco de canções inéditas, o lançamento de todas as suas canções em espanhol.
Cultuado por suas letras melancólicas e irônicas, Belchior colecionou sucesssos como Alucinação, Medo de avião, Fotografia 3x4, Brasileiramente linda, Comentário a respeito de John. Meu cordial brasileiro, A palo seco. Foi gravado por artistas tão distintos como Simone, Zeca Baleiro, Engenheiros do Havaí, Fagner, Karina Buhr, entre outros. Era uma vez um homem e seu tempo (1979) é o nome de um dos seus discos mais icônicos, aquele que traz a faixa Medo de avião, mas serve à perfeição como resumo da vida de Belchior.
>> OBRA COMPLETA
Confira a discografia de Belchior
1971 - Na hora do almoço (Copacabana - Compacto)
1974 – Belchior (Continental – LP)
1976 – Alucinação (Polygram – LP/CD/K7)
1977 – Coração selvagem
(Warner – LP/CD/K7)
1978 – Todos os sentidos
(Warner – LP/CD/K7)
1979 – Era uma vez um homem e seu tempo/Medo de avião (Warner – LP/CD/K7)
1980 – Objeto direto
(Warner – LP)
1982 – Paraíso (Warner – LP)
1984 – Cenas do próximo capítulo (Paraíso/Odeon – LP)
1986 – Um show - 10 anos de sucesso (Continental – LP/ K7)
1987 – Melodrama
(Polygram – LP/K7)
1988 – Elogio da loucura (Polygram – LP/K7)
1990 – Trilhas sonoras
(Continental – CD/ LP/ K7)
1992 – Eldorado - com Eduardo Larbanois e Mario Carrero (Movieplay – CD)
1993 – Baihuno (MoviePlay – CD)
1995 – Um concerto bárbaro (Polygram – CD)
1996 – Vício elegante (Paraíso/GPA/Velas – CD)
1999 – Auto-retrato (BMG – CD)
1999 - Um concerto a palo seco (Camerati – CD)
2004 - As várias caras de Drummond - Poemas de Drummond musicados por Belchior (Editora Caras)
>> LETRA AUTOBIOGRÁFICA
Em 1977, Belchior foi tema de uma reportagem especial da revista Contigo, em que respondeu questões enviadas por 25 fãs. Para a pergunta “qual de suas músicas mexe mais com você?”, a resposta do cantor foi: “Com toda a certeza, Fotografia 3/4”.
Fotografia ¾ – Belchior
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana
De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
E de ver o verde da cana
Em cada esquina que eu passava um guarda me parava
Pedia os meus documentos e depois sorria
Examinando o 3x4 da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha
Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade
Disso Newton já sabia: cai no sul, grande cidade
São Paulo violento, corre o Rio que me engana
Copacabana, zona norte e os cabarés da Lapa onde eu morei
Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar
Que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar
Mas a mulher, a mulher que eu amei
Não pode me seguir não
Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem
Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua
A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia
E pela dor eu descobri o poder da alegria
E a certeza de que tenho coisas novas
Coisas novas pra dizer
A minha história é talvez
É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte
Que no sul viveu na rua
Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo
Que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
Que ficou apaixonado e violento como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você que me ouve agora
Eu sou como você
Como você