Por definição, espiral é uma linha curva que se desenrola a partir de um ponto, dele se afastando e se aproximando gradualmente. Se a carreira de Criolo pudesse ser traduzida em tal linha, o ponto de partida seria a música popular brasileira e, apesar de ele ter mantido as espirais próximas do rap em seus últimos discos – Ainda há Tempo (2006), Nó na Orelha (2011) e Convoque seu Buda (2014) – esse ano ele resolveu tomar um novo rumo e lançar um disco inteiramente dedicado ao samba. Nasceu, então, Espiral de ilusão, lançado ontem pelo selo Oloko Records.
Em 10 faixas e pouco mais de 30 minutos, o músico destila suas referências sem abandonar os versos engajados. Se antes Cartola criava belas metáforas para falar sobre uma realidade dura, e Noel Rosa versava sobre a boemia e a malandragem carioca, agora Criolo comenta a vida real no melhor estilo “papo reto”. No primeiro single do disco, Menino mimado, por exemplo, ele prescreve: “Meninos mimados não podem reger a nação”, em uma alusão aos políticos brasileiros.
Para além de engajadas, as músicas são crônicas da realidade brasileira, principalmente das favelas da Zona Sul de São Paulo, mais especificamente do Grajaú, bairro onde nasceu e foi criado, que já recebeu homenagem na música Grajauex, de 2011. Em Espiral de ilusão, a paisagem urbana de Criolo aparece nas músicas Filha do Maneco, Hora da decisão e Cria de favela. “Quero ver quem vai ter coragem/ Ou peito para interferir/ Se a falange do mal está pronta/ E a paz teve que sair”, canta em um dos versos, que poderia ser rap, mas deu samba.
PREPARADO E muito mais do que um gênero musical que serve de base para as letras bem escritas, o samba de Criolo representa um “flerte íntimo” que ele se permitiu, algo que foi prenunciado em seu disco de 2011, na música Linha de frente, e novamente em Fermento pra massa, em 2014. É a prova de que o samba sempre esteve na vida de Criolo, mas o músico teve a sabedoria para esperar o momento certo para domá-lo.
E o coração de Criolo está afinado com os batuques do samba, tanto que a tranquilidade e a calmaria do cantor foram traduzidas em músicas que possuem um tempo próprio e se apresentam de forma elegante em uma produção crua, orgânica, que soa como se estivesse sendo executada ao vivo. Talvez o único erro seja justamente o esforço em torná-lo minimalista, já que em alguns versos um coro daria mais força à música. Embora isso não prejudique o andamento do disco, as músicas reaproximam o público de um músico mais sensível e metafórico, ainda que muitas vezes literal.
Apurada, a produção é assinada por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, que introduziram no trabalho instrumentos típicos do samba como o violão de sete cordas, o cavaco e a cuíca. Junto com o disco, Criolo preparou um material especial em formato de revista/encarte, on-line e gratuita, com materiais exclusivos sobre o trabalho, como uma entrevista sobre com o cantor, letras, partituras, fotos de estúdio, ilustrações, imagens e textos autorais de Criolo.
Elegante e acessível, Espiral de ilusão traz um Criolo reinventado e – não por mal – muito semelhante ao de antigamente. A capa é assinada pelo designer gráfico e ilustrador Elifas Andreato, que já desenvolveu algumas das capas de discos mais conhecidas da MPB, como Ópera do malandro, de Chico Buarque, e A rosa do povo, de Martinho da Vila. “Criolo, quando viu o desenho, chamou-o de guardião: figura que acolhe e ao mesmo tempo demarca o sagrado território do samba”, comenta o ilustrador. Talvez ainda seja muito cedo para estabelecer Criolo como um guardião do gênero, mas certamente ele prova que encontrou o jeito mais apropriado para acolhê-lo.
Espiral de Ilusão
De Criolo
Oloko Records
www.criolo.net/espiral/ .