“O samba tem poder agregador, sobretudo agora que o Brasil perde o principal: a esperança”. Quem diz isso é o compositor Toninho Geraes, um bamba mineiro da estirpe de Ataulfo Alves, Geraldo Pereira e Noca da Portela. Fornecedor de hits para Martinho da Vila (Mulheres), Zeca Pagodinho (Seu balancê) e Beth Carvalho (Se a fila andar), o belo-horizontino volta a pôr o gogó a serviço das próprias canções. Em seu quinto disco solo, Estação Madureira, ele se junta ao craque Moacyr Luz para saudar “o povo que grita nas ruas”, celebrar a riqueza da Amazônia e a saga de Chico Mendes e, como sempre, render tributo à mulher amada.
“Sou nó da tua madeira/ Sou lenha da tua fogueira/ Sacode a poeira que eu vou me virar”, cantam Toninho e “Moa”, velhos parceiros nas rodas de samba do Rio de Janeiro. O mineiro dedica A cara do Brasil ao “cidadão perdido” nestes tempos de intolerância, impeachment e reputações desmascaradas pela corrupção. “Já vivi de ocasião/ Já mudei de opinião/ Já fui pedra, fui vidraça/ Mas com raça não fiquei no chão”, diz a letra. “São as contradições que o nosso povo vive hoje, né? Entre o herói e o vilão, o certo e o errado, a esquerda e a direita”, resume Toninho.
Por falar em pedra, o compositor virou alvo em sua própria página do Facebook por classificar como golpe o impeachment de Dilma Rousseff. Alguns fãs avisaram que deixariam de ir a seus shows. Houve até “conselhos” do tipo “quem você pensa que é para falar de política? O Chico Buarque?”.
“Agressor, eu excluo – mesmo – da rede social. Tenho amigos que pensam diferente, uns até reacionários, defensores do Bolsonaro. Fizemos um trato: a gente vai tomar cerveja, mas não fala de política”, conta ele. “Tempos tristes, né? Na época da ditadura, elites e militares estavam de um lado, a gente de outro. Agora é muito mais difícil: a esquerda não sabe para onde vai, e a direita, como sempre, segue unida”, constata.
AGONIA Mas o Brasil parece ser como o samba: agoniza, mas não morre, como já decretou Nelson Sargento. Se na política e nas redes sociais imperam a intolerância e “tribunais” do Facebook e do Twitter, o portelense Toninho celebra tanto o povão que sacode a poeira quanto o mestre Sargento, patrimônio da Mangueira. Afinal de contas, as rivais azul-e-branco e a verde-e-rosa só brigam onde de direito: na Marquês de Sapucaí.
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“O samba tem o dom de unir”, resume o portelense Toninho, rendendo tributo ao veterano mangueirense . Porém, ele adverte: “faltam vez e voz” ao mais brasileiro dos gêneros musicais, pois as rádios, a TV e a mídia em geral não dão o espaço merecido ao sambista de raiz. “A exceção foram os anos 1980, na época da Clara Nunes e do Roberto Ribeiro”, observa.
INTERNET “Minha sina de Deus é levar/ Um pote de mel adoçado no mar”, versa o mineiro em Destino. Enquanto mídias tradicionais priorizam sertanejos, funkeiros e o pop pasteurizado, Toninho se enreda com gosto nas redes sociais, comemorando o fato de seus clipes ultrapassarem 1 milhão de visualizações.
“A faixa etária da plateia dos meus shows vai dos 20 aos 60 anos. Posso te dizer que a moçada de 25 a 30 anos chegou a ser maioria em muitos deles. O pessoal que gosta de samba genuíno me segue na internet”, revela.
Aliás, a rede também é “parceira”. A cara do Brasil, por exemplo, foi composta graças a ela, pois Moacyr Luz lhe mandou esta e outras letras pelo “zap zap”. “Facilita demais”, diz, Toninho, de 55 anos, dizendo ter “um pé dentro e outro fora da caverna”, em termos tecnológicos.
Por via das dúvidas, o mineiro mantém “bem guardadinhos” o gravador analógico e a coleção de fitas K-7 virgens. Também pudera. O parceiro baiano Roque Ferreira – “que mal atende o telefone”, segundo Toninho, e comparece no novo CD com a bela Mágoa – manda-lhe suas pérolas “na velha fitinha”, assim como Wilson das Neves, outro bamba de quatro costados.
Confira clipe de um sucesso de Toninho Geraes:
Tecnologia até ajuda, mas é só coadjuvante, pondera Toninho, observando que as obras-primas de Paulo César Pinheiro saíram de uma velha Olivetti portátil. “E é assim até hoje”, enfatiza.
ROMÂNTICO Das 13 faixas de Estação Madureira, sete falam de amor. Da sofrência do malandro arrependido (Laço da paixão, parceria com Paulinho Rezende) e das dores da separação (Mágoa, com Roque Ferreira) ao boêmio devotado à desconfiada musa (Livro aberto, com Gilson Roque).
A única faixa não assinada por Toninho é Caninana (Chico Alves e Marco Pinheiro), que compara a mulher amada à serpente brava e valente do título. Provocado pela repórter, Toninho garante que não teme ser crucificado no “tribunal feminista” ao chamar a musa de “cobra criada em lábia de cigana” e “diaba incorporada em querubim”. Mineiríssimo, explica: “Qualquer pessoa inteligente vê que ali está um grande elogio ao poder que a mulher exerce sobre o homem”. E, em seguida, cantarola: “Ela comanda o meu destino feito mandarim”.
MINAS Desde a década de 1980 radicado no Rio de Janeiro, Toninho avisa: “Sou Portela e Cidade Jardim”. Fala com paixão da escola belo-horizontina e dos desfiles realizados em BH há 30 anos. “O nosso carnaval era maior que o de São Paulo”, enfatiza, reivindicando mais apoio aos sambistas de BH – sobretudo agora, quando a folia da capital se revitalizou. “Nos anos 80, fizemos um belo carnaval ali na região do Arrudas, mas depois houve uma enchente e acabaram com a festa”, esbraveja.
Outra bronca: “BH não tem mais casas dedicadas ao samba”. Toninho Geraes faz essa advertência lembrando os bons tempos das gafieiras Elite e Estrela, do Primeira Bateria, da Muralha e do Peixe Vivo. Diz que, ao contrário do que gostaria, apresenta-se muito raramente em seu estado, sobretudo no interior. “Em casa de ferreiro, espeto é de pau”, brinca, contando que conhece todo o Brasil graças ao samba. “Só não cantei no Piauí”, revela, para logo emendar: “Ainda”.
ESTAÇÃO MADUREIRA
De Toninho Geraes
Produção: Alexandre Cardozo
Alma Boêmia Discos