Dori Caymmi volta ao Brasil e lamenta: 'Este Brasil não é o que me prometeram'

Após 25 anos nos EUA, músico lança 'Voz de mágoa', seu quinto álbum autoral, que traz parceria inédita com Fernando Brant e presta tributo a Minas

por Ana Clara Brant 14/04/2017 09:40

Myrian Villas Boas/Divulgação
Nascido no Rio de Janeiro, Dori Caymmi se diz 33% mineiro por ser filho de pai baiano e mãe mineira (foto: Myrian Villas Boas/Divulgação)

Durante 25 anos, o cantor e compositor Dori Caymmi morou nos Estados Unidos. Mas nem por isso deixou de tocar e cantar o Brasil. De volta ao país desde janeiro, a brasilidade ficou ainda mais aflorada. Isso se reflete em Voz de mágoa (Acari Records), seu quinto disco inteiramente autoral, que reúne inéditas compostas nos últimos oito anos.
O subtítulo do álbum, Música do Brasil, mostra que o artista mergulhou profundamente na brasilidade, recorrendo a memórias, referências e temas presentes em sua vida – a fazenda, a infância, a mina d’água, a natureza, a fé e o mar.

“Infelizmente, este Brasil que estamos vivendo aí não é o que me prometeram. O subtítulo do disco é uma provocação, no bom sentido. Pensar que a geração que me antecedeu tinha meu pai (Dorival Caymmi) e Jorge Amado, e a minha geração revelou nomes marcantes, extremamentes criativos, e agora a gente acaba em sofrência, em funk. É lamentável”, diz Dori.

A decisão de deixar Los Angeles – cidade para a qual se mudou com a mulher e os filhos, onde os netos nasceram – partiu do desejo de ficar mais perto dos irmãos, os cantores Nana e Danilo Caymmi. Também contribuiu a dificuldade de sobreviver nos Estados Unidos devido à alta do dólar e a vitória de Donald Trump. “A gente estava querendo vivenciar essa coisa de voltar, até porque trabalho mais aqui do que lá. Já escolhi o meu refúgio: uma casa no meio do mato, à beira de um riacho surpreendentemente limpo nos arredores de Petrópolis”, conta.

O novo CD tem 16 faixas – 13 com o parceiro mais constante de Dori, Paulo César Pinheiro. A primeira música que a dupla fez foi Evangelho, em 1969. É praticamente um casamento. “Paulinho virou um pouco o suporte da minha composição. Tenho musicado muitas letras e poesias dele. A gente lê e gosta das mesmas coisas: Jorge Amado, Guimarães Rosa, Adonias Filho. Somos ligados a um Brasil meio utópico. Pra falar a verdade, as coisas que estão acontecendo hoje na música, de maneira geral, não têm incentivado muito a compor. Minha geração está muito calada e cansada”, lamenta.

Pela primeira vez em sua carreira, Dori Caymmi – que completa 74 anos em agosto – arrisca-se em mares nunca navegados: o fado. No coração da procela foi composta com o bandolinista Pedro Amorim e o letrista Paulo Frederico, amigo de infância de Paulo César Pinheiro.

“É o primeiro fado que fiz na vida. Acho que ficou interessante”, comenta. Já Me levem embora, criação a partir de uma letra de Jorge Amado, foi lançada por Ivete Sangalo na trilha do remake da novela Gabriela (2012), quando a cantora interpretou a personagem Maria Machadão.

 


 

PARCEIROS O disco é dedicado a dois companheiros do violonista que partiram há dois anos: “Fernando Brant (1946-2015), sentinela da música brasileira, cuja memória o tempo jamais levará, e Luís Carlos Miele (1938-2015), querido amigo”.

A faixa que encerra o CD traz a última letra de Brant, marcando a primeira e única parceria dos dois. “Quando encomendei a letra a ele, queria algo bem mineiro e pessoal. Assim surgiu Serra do Espinhaço, que é a cadeia de montanhas que se estende por Minas e Bahia. Tínhamos uma admiração mútua. Toda vez que ia a BH, a gente conversava muito, bebíamos cerveja. Sempre tive muito carinho e respeito pela visão mineira do Brant, sem contar as suas lindas canções”, destaca.

Minas Gerais está presente em Desenredo, antiga parceria dele e Paulo César Pinheiro. Os dois compuseram um hino de amor ao estado: “Ê, Minas/ Ê, Minas/ É hora de partir/ Eu vou/ Vou-me embora pra bem longe”. Dori se diz 33% mineiro, pois nasceu no Rio e é filho de baiano com mineira (a mãe, Stella Maris, é de Pequeri, cidade da Zona da Mata).

“Sinto falta da maria-fumaça, da goiabeira, do carro de boi, de Pequeri e de Cataguases, onde estudei. Me dá uma tristeza ver a estação de trem vazia... O progresso tem sido muito burro. Não sou contra o progresso, mas contra a burrice. Hoje em dia, todo mundo fica preso ao celular, só quer saber de postar e se esquece de coisas fundamentais”, lamenta.

Diante das desilusões, o nome do disco, Voz de mágoa, não poderia ser mais apropriado. Dori diz que está cada vez mais impressionado com o radicalismo e o patrulhamento que tomaram conta do mundo. “A faixa-título fala justamente que todo canto, mesmo triste, ameniza a dor do mundo. É por aí. É através da música e da arte que a gente deve encontrar esperanças contra isso tudo que está aí atrapalhando a nossa inspiração e criatividade. Tudo ficou tão radical. Um exemplo é essa polêmica sobre a palavra mulata. Era só o que faltava. Eu mesmo sou filho de mulato. Alguém vai me repreender ou até me prender por dizer isso? O mundo com Trump e Kim Jong-un (ditator norte-coreano) não é o que sonhei. As coisas estão piorando. Nelson Rodrigues costumava dizer que os idiotas vão tomar conta do mundo. Não pela capacidade, mas pela quantidade, porque eles são muitos. Espero, sinceramente, que essa situação se reverta”, desabafa.

SERRA DO ESPINHAÇO

(Fernando Brant e Dori Caymmi)

A terra foi meu regaço
Eu fui menino, eu andei
Na Serra do Espinhaço
Subi na pedra descalço

Na Serra do Espinhaço
Cachoeira molha meu mundo
A serra é o meu espaço
Bebi a água, colhi a flor

Na Serra do Espinhaço
O trem de ferro apitava
O vento traz a lembrança
Minha Serra do Espinhaço

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