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Em artigo especial para o EM, Geraldo Vianna fala sobre a magia da viola

Compositor descreve o comprometimento dos violeiros com seu instrumento, aborda a lenda dos pactários e conta sua experiência com esses músicos

Pedro Antunes/Estadão Conteúdo

- Foto:

 

Geraldo Vianna*
Especial para o Estado de Minas

 

Viola caipira é instrumento exigente e, ao mesmo tempo, entregue a toda sorte de riscos. Tocar suas cordas soltas provoca um belíssimo acorde que ilumina a alma de qualquer ouvinte ou pretenso estudante de seus segredos. Na medida em que avançamos no estudo, se ela sente que há impaciência ou desapego no seu trato, que está sendo subestimada, desconfiada, por muito pouco ela desafina. Se a tratamos com desprezo ela se rebela e é capaz de suportar as dores de dedos descuidados, sem sucumbir aos desejos dos que não compreendem o sentido da dedicação no fazer musical, da entrega... Mas jamais haverá uma verdadeira sintonia, uma extensão dos braços e mãos no vibrar das cordas e tremor de seu corpo que projeta os sons.

A viola, perturbada, é capaz de levar à exaustão e ao sofrimento aqueles que não entendem o seu jeito de tocar as pessoas. Que miram o espelho refletindo os desejos narcisistas de projeção e sucesso. Que não expõem suas tristezas, alegrias e paixões, abrindo seu coração no pontear de canções simples ou de esmero técnico, embasado pela entrega. Que não compartem sentimentos profundos por meio de sua sonoridade, ao acariciar o seu braço, suas cordas e todo o seu corpo.

Mas se ela percebe carinho, romantismo e simplicidade em mãos que passeiam por seus segredos... Se entrega.

Sempre tive grandes amigos violeiros. Cada qual com sua personalidade, seu jeito de lidar com os segredos da vida... E da viola

. Alguns tímidos, mas sinceros, lidando com seus encantos com respeito, simplicidade e cuidado. Compreendendo sua sanha maliciosa, mas cultivando sua candura religiosa. Mesmo sabendo de sua força, seguem o caminho da convivência em paz. Esses são os românticos. Verdadeiros equilibristas dos aspectos dionisíacos e apolíneos da vida. Talvez com certo alheamento, mas não importa.

Há outros que escolhem um caminho mais árduo. Dominar um universo desconhecido e tentar, por meio da paixão, desvendar mistérios e caminhos difíceis, transpondo portas estreitas, seguindo atrás de um sonho não sonhado, na direção não se sabe de quê. Esses são ou serão grandes músicos e aventureiros. Terão que mirar longe e alimentar a certeza de alcançar o inalcançável, intangível... Predomina em sua caminhada uma longa batalha apolínea e dionisíaca, cercada por perturbações, dúvidas e anseios.

Há ainda aqueles que vivem a viola
. Desconhecem os motivos que os levam a tocar. Simplesmente tocam. Esses são, normalmente, os mentores dos demais. Vivem em zonas rurais, espalhados por todos os cantos do Brasil. Participam de festas da tradição religiosa oriunda do sincretismo e são a fonte que sacia a sede de todos aqueles que empreendem a caminhada do crescimento espiritual por meio do estudo desse instrumento. Falam de pactos com o demônio, mas se agarram à crença em Deus para a sua proteção. Alimentam e propagam as lendas Faustianas, protegidos pelo escudo da força divina, quando questionados sobre as formas de se negociar com o “dito cujo”...

DUELO Renato Andrade me disse certa vez que a negociação se dá por meio de um duelo musical, conduzido com perspicácia, competência e malícia, quase sempre tendo como cenário uma encruzilhada. Que somente vencendo o “diabo” e, consequentemente, dominando nossos medos, poderemos nos vangloriar de todo o poder e sucesso. Entendi isso como algo interior, semelhante ao que todos os artistas fazem. Um pacto com as dificuldades que a vida nos impõe, ao optarmos pela difícil tarefa de uma existência dedicada à arte, ao estudo de um instrumento. Para Renato, “uma mudança de rumo”. Mas ele também me disse que há outros caminhos. Não quis revelar...

Roberto Corrêa me segredou que aquilo que Renato possuía instintivamente ele encontrou por meio de pesquisas. Nisso, o próprio Renato concordava. Embora nunca revelasse nada sobre seu aprendizado, podia-se perceber que ele frequentara a universidade dos cultivadores originais. Que soubera equilibrar os “toques” tradicionais das origens com o estudo da técnica apurada dos concertistas. Uma bela mistura... Mais uma vez me deparo com a duplicidade de Apolo e Dionísio.

Outro violeiro que não quis falar do pacto, mas admitiu sua existência foi Paulo Freire. Para ele, qualquer violeiro do sertão vai ter história para contar. Mas frisou que os violeiros não podem falar de suas próprias experiências. Será que faz parte do pacto? Não sei. Presenciei tanta coisa bonita com esses mestres que fico confuso, embora admire e goste dos pactários. Às vezes tenho dúvidas se o pacto não é feito com Deus...

Há algum tempo atrás, produzi um grande show em Belo Horizonte, onde gravamos um DVD com importantes violeiros de Minas Gerais – Chico Lobo, Fernando Sodré, Wilson Dias, Quincas da Viola, Bilora, Renato Caetano, Trem de Minas e Violeiros de Madredeus. No palco, a diversidade de estilos musicais interpretados por verdadeiros representantes desse instrumento. Como em toda produção, depois de sanados os problemas que surgem naturalmente durante o evento, no final, sob aplauso de uma grande plateia, vi, ainda no camarim, o desfilar de sorrisos escancarados no rosto de artistas realizados, enquanto acariciavam com flanelas seus instrumentos, para depois guardá-los em seus estojos. Parecia que nesse último olhar, antes de fechar a tampa do estojo, havia um comprometimento de dar continuidade ao pacto. Uma verdadeira cumplicidade carinhosa e respeitosa. Uma conversa silenciosa.

EMPACADO Na medida em que fiquei só com os técnicos, fazendo as últimas cópias e guardando toda a parafernália, lembrei-me de um episódio no estúdio Bemol, enquanto produzia um CD de Renato Andrade, infelizmente o último gravado por ele. Em determinado momento, segundo palavras dele, empacou. Os dedos ou a viola não queriam colaborar. Depois de algumas tentativas, sugeri que retomássemos aquele tema de difícil execução no dia seguinte. Ele, com autoridade, pediu-me que apagasse as luzes do estúdio e esperasse cinco minutos. Ficamos todos em silêncio, no escuro, esperando. Ouvindo sua voz autorizando que acendêssemos as luzes, ainda vi um semblante austero mirando a viola sobre suas pernas. Autorizei o início da gravação e vi brotar uma das grandes interpretações de Renato para uma música complexa tecnicamente.

Saiu do estúdio vibrando e rindo e me olhou matreiramente. Eu, pensando nas várias conversas que tivemos sobre o pacto, ouvi a música algumas vezes com certa precaução. Talvez receio. Terminamos a gravação e todos se retiraram para um café. Eu, em silêncio, sentado com as mãos no queixo pensava na beleza de ser músico. De se dedicar ao estudo de um instrumento e valorizar cada nota tocada... Todos, em algazarra, falando alto, se afastaram. Ouvi ainda me chamarem, mas não respondi. Voltaram.

E eu lá... Olhando a viola.

* Geraldo Vianna é compositor, violonista, arranjador e produtor musical