O disco Maria Fumaça completa 40 anos em 2017. Com ele, a banda Black Rio conquistou americanos e europeus com sua mistura de samba, soul e funk. Liderado pelo saxofonista Oberdan Magalhães (1945-1984), o grupo se tornou um dos ícones da música negra brasileira. Oberdan, Luis Carlos (bateria e percussão), Barrosinho (trumpete), Lúcio (trombone), Claudio Stevenson (guitarra), Jamil Joanes (baixo) e Cristovão Bastos (piano) gravariam mais três álbuns até 1984, quando a banda se desfez devido à morte de seu líder.
A onda black continua batendo – e com força – no cenário brasileiro deste século 21. Empoderados, jovens de cabelos ouriçados – assim como os de Oberdan – lutam contra o racismo e fazem das pistas uma de suas trincheiras. Jovens compositores e cantores, Liniker, Tássia Reis, Ellen Oléria, Emicida, Karol Conka, Zaika dos Santos, Flávio Renegado e Rael, entre tantos outros, bebem tanto na fonte do samba, do samba-rock e da MPB – além, claro, de Tim Maia, Cassiano e Jorge Ben Jor – quanto do soul, funk, R&B e rap para celebrar o orgulho negro em suas letras. Até o veterano Mano Brown, de 46 anos, elançou Boogie naipe, com sonoridade fortemente influenciada pelo soul.
''A gente está vivendo um novo momento'', diz o compositor e instrumentista William Magalhães. Filho de Oberdan Magalhães, ele retomou a Banda Black Rio em 1999 e, desde então, tem feito shows em palcos respeitados da Europa. Em 2011, o grupo lançou o CD Super nova samba funk pelo selo inglês Far Out Recordings, contando com Elza Soares, Mano Brown, Gilberto Gil, Seu Jorge e Caetano Veloso. Este ano, planeja a edição comemorativa dos 40 anos de Maria Fumaça, por meio de campanha colaborativa na internet. ''Até novembro, o disco fica pronto'', diz Magalhães. Outro projeto – este só de William – estreia nesta quarta-feira, 22, no Bourbon Street, em São Paulo. Trata-se do Black Beatles, com releituras suingadas de clássicos dos Fab Four, temperadas com jazz, funk, soul e samba.
Magalhães diz que a globalização, as facilidades que a internet trouxe para gravar e produzir discos e a força da música negra (como o rap) na cena internacional contribuem para fortalecer a onda black no país. ''Afinal de contas, a gente vive num país negro'', reforça. ''Tem muita gente gravando e produzindo em casa''.
Exemplo disso é Liniker, de 21, que deu os primeiros passos na carreira musical em Araraquara, no interior de São Paulo. Cria de bailes black locais – a mãe era professora de dança –, tem repertório fortemente marcado pelo soul. Ao lado da banda Os Caramelows, chamou a atenção na cena indie e conquistou espaço no mainstream.
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RESISTÊNCIA
Circulando pelo país para divulgar o disco Afrofuturista, a cantora e compositora Ellen Oléria, de 34, diz que este momento musical se insere no contexto ''de resistência ao Brasil brutalmente racista e misógino''. Utilizando eficientemente a internet, há uma geração extremamente produtiva e contundente, ''livre do controle dos grandes conglomerados da indústria cultural'', observa Ellen, citando os colegas Karol Conka, Liniker, Rael e Emicida, entre outros.
Se há rap ao lado de soul e R&B revitalizados, há também congada, maracatu, carimbó, samba, lundu e catira, diz ela. Para a compositora, ''a teia de pertencimento'' da cultura popular vem sendo revigorada com o uso de ferramentas tecnológicas, aplicativos, novos pedais, samples e eletrônica, por exemplo. ''As raízes vêm sendo constantemente atualizadas'', pondera.
Ellen Oléria e William Magalhães participam de Boogie naipe, o primeiro disco solo do rapper Mano Brown, cuja turnê nacional começa em 12 de maio, com show em São Paulo. Diferentemente do trabalho realizado há 27 anos com o Racionais, Brown investe pesado na sonoridade do soul, R&B, samba-rock e do funk das antigas em canções que falam de amor. Seu baile black traz ecos do estilo Motown, a lendária gravadora de Detroit que abrigou Marvin Gaye, Stevie Wonder e Michael Jackson.
DIÁLOGO
O coprodutor de Boogie naipe é o cantor, compositor e produtor paulistano Lino Krizz, de 42. Dono da poderosa voz que se ouve nos shows e discos do Racionais e nome respeitado da cena soul, Lino diz que o álbum, presente em várias listas dos 10 melhores CDs de 2016, não é versão saudosista da black music dos anos 70/80. A aposta é no diálogo da sonoridade contemporânea com o soul e o funk. ''É a mistura do moderno com o retrô'', resume. Entre os convidados estão Max de Castro e Simoninha, mas também os veteranos Hyldon e Leon Ware – este último, lenda da Motown, trabalhou com Marvin Gaye, Michael Jackson e Stevie Wonder. Foi um dos últimos trabalhos do americano, que morreu em fevereiro, aos 77 anos.
''Fomos a fundo. Acredito que esse álbum possa vir a se tornar um marco na música negra brasileira'', diz Lino, lembrando que a diversidade faz muito bem ao rap. Mano Brown, deliberadamente, abriu mão da zona de conforto do hip-hop. ''O artista não pode ficar refém do que já fez sucesso'', diz Lino, que, paralelamente a essa parceria, divulga seu álbum solo Consumer fire, lançado em 2016. ''É muito positivo o movimento do Mano Brown com esse projeto'', afirma Ellen Oléria. ''Ele se reinventou'', observa.
William Magalhães, que também bate ponto em Boogie naipe (uma das faixas, Mulher elétrica, fez parte de um disco da Black Rio), concorda. ''Independentemente de ser o grande poeta periférico do Brasil, talvez o maior, Mano Brown pôs ali o seu bom gosto musical para chamar a atenção para a old school do funk e do soul brasileiros'', diz. E pondera: ''O rap nunca foi tão melódico como hoje em dia''.
MINAS
A DJ Black Josie, de 43 anos, destaca o vigor da nova cena. Figurinha carimbada da noite de BH, Josie destaca o revival do afrofunk, por exemplo. Diz que a ''música preta universal'' tem incorporado novos timbres, ressaltando o forte diálogo com a eletrônica. Josie cita a rapper Karol Conka, que, em parceria com o duo Tropkillaz, desenvolve trabalho criativo, respeitado nas pistas europeias. ''Tem um renascimento aí'', aponta.
Josie observa que a militância política dos jovens negros se reflete nessa cena. Belo Horizonte também se faz presente, enfatiza ela, citando os trabalhos de Zaika dos Santos, da banda Cromossomo Africano e do projeto Funk-se. ''Não podemos nos esquecer do trabalho do DJ Joseph e do projeto Quarteirão do Soul'', conclui.
MOVIMENTO?
Para o produtor e compositor Lino Krizz, a efervescência da música negra brasileira não constitui, propriamente, um movimento. Pesquisador do tema, ele observa que nomes fundamentais como Wilson Simonal, Tim Maia e Jorge Ben Jor brilharam de forma solo, a partir dos anos 1960. ''Talvez, o grande movimento da nossa música negra tenha sido o pagode da década de 1990'', diz. ''Infelizmente, depois da morte de Tim Maia, há 19 anos, não houve um outro ícone tão poderoso quanto ele''. Por outro lado, Krizz faz questão de citar nomes importantes do segmento de que o Brasil, injustamente, vai se esquecendo, como Lady Zu, Sônia Santos e Paulo Diniz.