Houve um momento na história do samba em que um ritmo dançante tomou conta das boates do Rio de Janeiro com onomatopeias como telecoteco, esquindô e ziriguidum. Tirou, literalmente, os frequentadores para dançar. Compositores passaram a inserir mais suingue naquelas melodias, levando para dentro das casas noturnas o órgão e instrumentos elétricos, que ajudaram a dar outra sonoridade ao samba. Era praticamente um movimento musical, mas ele nunca foi normatizado ou encarado como tal. E muito menos estudado, embora tenha chegado a virar verbete de dicionário.
O sambalanço invadiu o Rio dos anos 1950 e 1960, no mesmo momento em que a bossa nova tomava conta dos apartamentos de jovens da Zona Sul com letras contemplativas e intelectualizadas. O pesquisador e crítico Tárik de Souza era adolescente quando o sambalanço começou a se espalhar.
Fã daqueles compositores, há 15 anos ele decidiu pesquisar a fundo e agora lança Sambalanço, a bossa que dança: um mosaico, livro que faz justiça ao movimento cuja história acabou ofuscada pelo interesse sem-fim pela bossa nova. O projeto chega a público pelo selo Kuarup.
''Como jornalista e crítico de música, estranhei que (a história do sambalanço) não tivesse sido registrada por ninguém. Aí me dei a tarefa de fazer esse registro, até porque fui fã de vários artistas que estouraram naquela época. Acompanhei tudo'', conta. O livro aprofunda a história do samba quando o país comemora o centenário de seu gênero musical mais famoso.
O sambalanço surgiu na mesma época da bossa nova. Ambos seguiram em paralelo até o fim dos anos 1960, quando começaram a murchar. Havia certa rivalidade entre eles, embora alguns artistas de um lado tenham bebido nos ritmos do outro lado. Para Tárik, esse gingado trouxe novas possibilidades para o samba.
ÓRGÃO
''O sambalanço foi um movimento, um estilo que surgiu dentro do samba. Vem desde os tempos em que ele começou a ganhar corpo com orquestrações, na época do teatro de revista, até ser compactado para dentro das boates de Copacabana, ganhando aí o órgão e o sonovox. O samba eletrificado tinha um balanço completamente diferente, com instrumentos que não têm nada a ver com samba'', explica.
O livro traz um ensaio sobre a obra dos principais compositores – Orlandivo, Miltinho, Djalma Ferreira, Ed Lincoln e Celso Murilo – e seus intérpretes – de Inezita Barroso e Dolores Duran a Elza Soares e Isaurinha Garcia. Um dos destaques do movimento foi o cantor Sílvio César, mineiro de Raul Soares. Outro capítulo traz verbetes dedicados a 13 artistas, ajudando o leitor a se situar, mas é nas entrevistas que está o material mais interessante do livro.
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Orlandivo, que morreu há 20 dias, contou a Tárik como convenceu João Donato, um dos precursores da bossa nova, a gravar Sambaflex, clássico do sambalanço. Inventor do ''samba de chave'' (fazia percussão com elas), Orlandivo estourou com Bolinha de sabão. Mais tarde, gravaria com Jorge Ben os sucessos Por causa de você menina e Mas que nada.
''Sei muito bem que o samba tá misturado/ Desse tempero sai um samba legal/ É samba rock, funk samba de jazz/ É sambalanço samba flex demais'', cantou Orlandivo. Entrevistas com Durval Ferreira (que se dividiu entre a bossa nova do Tamba Trio e o sambalanço); Elza Soares, que militava em todos os lados e viu o marido, Garrincha, compor um "samba balançado"; e João Donato, responsável por arranjos de discos de Orlandivo, Dóris Monteiro e Eumir Deodato, entre outros, trazem histórias que ajudam a delinear o movimento.
Qual foi a dificuldade de delimitar o sambalanço, já que ele nunca chegou a ser estudado enquanto movimento?
A dificuldade é que foi um movimento que surgiu junto com a bossa nova e trocou figurinhas com ela. O Durval Ferreira, por exemplo, foi um grande compositor da bossa nova, atuou dentro do Tamba Trio e, ao mesmo tempo, foi guitarrista do Ed Lincoln, que começou como baixista tocando com Luiz Eça, que depois faria o Tamba Trio. É um pessoal que vem dessa mesma origem da bossa nova e criou um movimento diferente. Tem uma entrevista bastante elucidativa com o João Roberto Kelly, um carioca da Zona Sul que estudou piano erudito e tinha tudo para ser bossa-novista. Perguntei-lhe por que não aderiu à bossa nova, e ele explicou que ali não tinha o balanço que ele queria. Esse veneno a mais, esse molho a mais, esse ritmo a mais é justamente o sambalanço, que incorporou muita coisa caribenha, com atabaques, para aumentar o balanço. Foi um período em que a música usou muitas onomatopeias para ressignificar essa coisa do ritmo: esquindô, telecoteco, ziriguidum. Não havia nada teórico escrito sobre isso.
Havia rivalidade entre o sambalanço e a bossa nova?
Tem uma rivalidade, e isso está bem patente em várias entrevistas do livro. Ao mesmo tempo, é curioso que o sambalanço tenha surgido um pouco antes da bossa nova. O primeiro é de 1951, do Djalma Ferreira, mas ele pega fogo mesmo a partir do final da década de 1950, exatamente na época em que a bossa nova estourou. E ele começa a perder força exatamente em meados dos anos 1960, quando a bossa nova também perdeu força. São quase como interfaces: a bossa nova mais intelectualizada, com mais cuidado com a harmonia, e o sambalanço com mais ênfase no ritmo.
Quem fazia samba fazia sambalanço também? Quem fazia bossa nova fazia sambalanço?
Não. As coisas são separadas. Fiz questão de colocar a entrevista com João Donato, um dos precursores da bossa nova, mostrando até que ponto tinha ligação com essa coisa de sambalanço. Algumas músicas dele são verdadeiros sambalanços, mas são poucas. A grande maioria tende mais para o jazz, é mais elaborada harmonicamente. O Walter Santos, um compositor espetacular, fez uma canção sensacional. Diz o seguinte: ''Bossa nova ou samba jazz/ Sambalanço ou samba só/ O que interessa é que o balanço é bom''. Ele cita todas as nomenclaturas que surgiram na época e praticamente colidem umas com as outras. Fiz questão de separar o que é sambalanço do que é bossa nova.
Você mostra que o sambalanço surgiu durante um período ufanístico do país. Esses períodos são bons para a cultura?
Deprimida, é difícil a pessoa criar algo. Então, quando há um momento de euforia, com uma ideia de que agora o Brasil vai dar certo, aí surgem adesões de tudo quanto é lado, pessoas querendo criar, inovar, fazer coisas novas. Quando o país está muito pra baixo, é mais complicado. Então, acho que tem a ver com isso, com o estado de espírito das pessoas. A época do sambalanço foi uma época radiante do Rio de Janeiro. O Rio estava no auge, as pessoas frequentavam as boates. Elas saíam da boate e iam direto para a praia. Era uma coisa incrível, uma boemia que não existe mais.