Pelo telefone, gravado por Donga em 1917, pode ser considerado o marco das origens do samba, mas Neto escolheu o ano de 1890 para dar início a essa narrativa. O primeiro volume segue até 1930, embora o autor avance um pouco sobre a década de 1940, quando o samba se tornou o gênero mais gravado do Brasil.
Ao pesquisar sobre Getúlio Vargas para a monumental biografia lançada entre 2012 e 2013, o jornalista cearense se deparou com o ambiente cultural efervescente da primeira metade do século 20. “Foi exatamente naquela época que o samba, saindo dos espaços da marginalidade, passou a ser apropriado e alçado à condição de símbolo máximo de uma pretendida identidade ‘nacional’. Assim, escrever sobre ele é um desdobramento quase natural de minhas pesquisas anteriores”, garante.
Em uma narrativa nada linear e focada em personagens, Neto navega pela história por meio das figuras que configuravam a cena carioca das origens do samba. O autor não se prende a uma cronologia, o que ajuda a desenhar um cenário do Rio de Janeiro da época. A opção rendeu os melhores momentos do livro, iniciado com um episódio de 1945 protagonizado por Heitor Villa-Lobos e pelo maestro inglês Leopold Stokowski, quando os dois juntaram uma turma de bambas da Mangueira para gravar um disco de música brasileira em um navio uruguaio ancorado no porto do Rio. Stokowski queria levar o material para um festival de folclore, mas nem o festival nem o disco chegaram a ser concretizados.
Elite O encontro, no entanto, dá o tom do quanto o samba já atraía a atenção da elite brasileira em meados da década de 1940, realidade bem diferente daquela vivida pelos sambistas no início do século. O gênero surgiu marginal e seus inventores não eram exatamente heróis. Boa parte das fontes de Neto, além da bibliografia obrigatória, foram jornais, gravações e documentos variados, especialmente os boletins de ocorrências, folhas corridas e inquéritos policiais garimpados em arquivos públicos e particulares
“No caso do samba, manifestação popular que tem uma narrativa construída com lastro em forte tradição oral, o desafio foi cotejar essa memória coletiva do gênero com a documentação disponível, ora para confirmar versões, ora para relativizar mitologias”, avisa o autor.
Mito Personagens que viveram por mais tempo, como Pixinguinha (1897-1973) e Ismael Silva (1905-1978), construíram em torno de si uma mitologia, mas boa parte deles viveu em condições marginais e foi alvo permanente de preconceito social e das políticas higienistas da época
Segundo ele, os bambas foram hábeis em reconstituir as próprias trajetórias durante entrevistas e depoimentos. “Mas o pesquisador não pode se restringir e se submeter às verdades autocongratulatórias construídas pelos próprios protagonistas”, aponta Neto. “A memória é seletiva e construída. Daí ser importante a pesquisa em outras fontes.”
No início, escolas de samba, blocos de carnaval e o próprio gênero eram vistos com olhar enviesado pela elite brasileira. Foi apenas a partir de da década de 1940, graças a conjuntos como o Época de Ouro e à popularização do rádio, que o samba passou a interessar também nos grandes salões da cena carioca. Mas essa parte fica para o segundo volume da trilogia de Lira Neto.
Uma história do samba (As origens)
• Autor: Lira Neto
• Companhia das Letras
• 368 páginas
• Preço sugerido: R$ 64,90
Quatro perguntas para...
Lira Neto
escritor
Sem dúvida, as maiores dificuldades se concentraram na reconstituição das trajetórias dos personagens da primeiríssima geração, como Hilário Jovino Ferreira, o Lalu de Ouro, pela simples distância cronológica. Circunstância que foi agravada pelo fato de que, naquele momento, o samba ainda não havia sido absorvido pela então nascente indústria do entretenimento – e seus personagens, portanto, ainda viviam em situação de marginalidade e invisibilidade social.
Você fala das queixas de “perda de autenticidade do samba”. Qual o lugar desse gênero musical no Brasil de hoje?
O samba, assim como qualquer manifestação da cultura popular, está sempre se reinventando, incorporando novas influências. Querer que a cultura popular – e o samba, por extensão – fique congelada no tempo, em nome da sacralização do que ela teria de “genuína” e “autêntica”, significaria relegá-la à condição de folclore. E a folclorização nada mais é do que a mumificação da tradição, a verdadeira morte da cultura
O que acha da proibição de marchinhas antigas, hoje consideradas politicamente incorretas? E de letras explícitas de hits como Deu onda?
Ora, qual seria a alternativa a isso? Normatizar o carnaval, impor modelos e padrões aceitáveis aos ouvidos ditos ilustrados e bem-educados? Higienizar algo que é anárquico e libertino por vocação? Boa parte da produção dos primeiros sambistas, como Caninha, Ismael Silva e Sinhô, era machista, marcadamente misógina. E aí, o que fazemos? Vamos deixar de ouvir Ismael? Vamos colocar Caninha no índex prohibitorum da música brasileira? Uma obra de arte é fruto das contradições e circunstâncias de seu tempo.
Podemos dizer que o samba é a expressão mais genuína da música brasileira? Qual o papel do gênero na formação da nossa identidade?
Abomino esse termo, “identidade”, que embute em si uma carga ideológica nada inocente. Toda “identidade” é construída, fabricada artificialmente a partir de generalizações que aplainam e excluem a diferença, o dissonante, o desarmônico. Como podemos falar de “identidade” em um país plural, caleidoscópico, multiétnico, mestiço, como o Brasil? Qual seria, portanto, a “identidade” brasileira? Getúlio tentou forjar a ideia de uma grande identidade nacional e, em seu projeto, chegou a queimar as bandeiras estaduais e proibir os hinos específicos de cada unidade da federação. Tudo em nome da ideia grandiloquente e farsesca de um Brasil único, unitário, onde as diferenças e as particularidades são abolidas por decreto. O conceito de “identidade cultural” é autoritário, arrogante, higienista.